sexta-feira, 4 de novembro de 2011

O TEÍSMO ABERTO E AS SAGRADAS ESCRITURAS

MESQUITA NETO, Nelson Ávila (E. T. C. S.).

1 INTRODUÇÃO

O Tesísmo Aberto, ou “Teologia Relacional”, como é conhecido no Brasil, foi motivo de acentuado debate à alguns anos, em virtude da aderência a esta corrente teológica por parte de alguns pastores que gozavam de relevante popularidade e influência.

Embora o movimento não tenha saboreado a receptividade esperada, arrefecendo após angariar numerosas críticas das posições históricas (calvinismo e arminianismo), as quais, ainda que conflitantes, uniram-se a fim de refutar aquela, o Teísmo Aberto permanece vivo no ambiente eclesiástico e acadêmico, tendo demonstrado, principalmente em seus pronunciamentos nesta última esfera, bastante produtividade, como comprovam os livros e artigos de seus proponentes que continuam a proliferar-se ano após ano.

Assim sendo, cremos fazer-se indispensável uma exposição, ainda que breve, de sua proposta, afim de constatarmos se esta apresenta-se como uma abordagem teológica sadia, que merece ser estudada e considerada como genuína alternativa bíblica para os temas a que se propõe responder, ou se deve ser rejeitada e combatida com intrepidez, por revelar um caráter não-bíblico e ofensivo ao Deus da Revelação.

Principiaremos apresentando aquilo que parece ser a base sob a qual se fundamenta a visão aberta de Deus, prosseguindo através de uma síntese das principais características que compõem o ensino geral do Teísmo Aberto. A partir daí, veremos algumas proposições teológicas e filosóficas que claramente influenciaram na formulação de seu pensamento, para logo em seguida abordarmos seu desenvolvimento prático, findando com o indispensável escrutínio bíblico da matéria em questão.

2 O TEÍSMO ABERTO E O AMOR DE DEUS: O ATRIBUTO EXALTADO

Deus é amor! Este tem sido o maior slogan cristão dos nossos tempos. Sem dúvida, Deus é amor! É maravilhoso saber que entre Seus atributos encontra-se o amor. Assim como Deus é imutável (“Porque eu, o Senhor, não mudo” [Ml 3.6[1]]) e Eterno (Gn 21.33; Dt 33.27; Jr 10.10), Ele “é amor” (1 jo 4.8), e por isso podemos confiar e nos alegrar na palavra que diz: “com amor eterno eu te amei”(Jr 31.3). Desde o princípio Deus era e continuará sendo pelos séculos dos séculos o “Deus de amor” (2 Cor 13.11); Ele não ama hoje e amanhã deixa de amar. Seu amor permanece inabalável a preencher os recipientes de Sua misericórdia. Ou, nas palavras de Bavinck (2001, p. 150), “Esse amor não é sujeito ao tempo e ao espaço, mas está acima tanto de um quanto de outro, e vem da eternidade para o coração dos filhos de Deus”.

Deus é perfeito e o amor é uma das perfeições de Seu caráter. Deus não pode ser mais amoroso, ou menos amoroso, pois de outra forma Ele não seria perfeito; haveria algo ainda a ser melhorado, ou acrescentado, ao Ser de Deus. Portanto, Deus ama na medida certa. Contudo, quanta confusão se tem levantado sempre que se eleva um dos atributos de Deus acima dos demais. Por exemplo: através da ênfase na Onipresença e na Imanência de Deus, chegou-se ao Panteísmo, onde Deus (um ser impessoal) e o cosmos são indistintos. Sendo assim, Deus é tudo e tudo é igualmente Deus. Do mesmo modo, através da ênfase na Transcendência divina, chegou-se ao agnosticismo, onde qualquer conhecimento acerca da Divindade torna-se plenamente impossível. Da ênfase na Onipotência e Onisciência, originou-se o Fatalismo mórbido, que coloca o homem na condição de um ser passivo e inerte, negando-lhe qualquer tipo de responsabilidades. Mesmo que seja o amor, um dos considerados mais sublimes atributos de Deus, este também não pode ser colocado acima, como gerenciador, dos demais atributos do Ser de Deus, pois todos eles coexistem igualmente. No entanto, a ênfase no amor de Deus tem sido marca registrada desta geração e tem trazido drásticas conseqüências para a igreja. O “Teísmo Aberto” é inquestionavelmente marcado por esta ênfase.

3 O QUE ENSINA O TEÍSMO ABERTO?

Em síntese, o “Teísmo Aberto” (ou “Teologia Relacional”) ensina que, por amor, Deus trouxe à existência criaturas e quis relacionar-se com elas, mas, para que este relacionamento fosse verdadeiro, estas pessoas precisavam ser totalmente livres; por isso, Deus, em amor a este relacionamento, abriu mão de Sua soberania, erguendo-se do trono do universo e unindo-se aos agentes livres que criou, para juntamente com Eles construir o futuro. Deus também deixou de lado Sua Onisciência, pois, não haveria um relacionamento de fato livre se ele soubesse o que faríamos amanhã, por isso, Deus poderia saber tudo acerca do passado e do presente, mas não do futuro. Na verdade, o conceito de onisciência é redefinido por esta visão. Como expressa Pinnock, um dos maiores propagadores da visão aberta de Deus:

Vemos o futuro não como totalmente estabelecido, e isto, é claro, relata os riscos que Deus encara no futuro. Nossa segurança advém, não da crença de que Deus conhece tudo exaustivamente (uma visão que questionamos biblicamente), mas da crença que ele tem a sabedoria para lidar com qualquer surpresa que se levante (apud REYMOND, 2011, p. 347).

Este relacionamento também continuaria não sendo livre se Deus interferisse nas atitudes livres de Suas criaturas sempre que algo não saísse de acordo com Seus planos, por isso Deus mutilou Sua Onipotência, podendo tudo, mas nada fazendo sem consentimento prévio de todos os agentes livres envolvidos na situação.

4 O TEÍSMO ABERTO E SUA ORIGEM

Uma boa pergunta a se fazer seria: como os proponentes desta corrente teológica chegaram a estes conceitos? Alguns de seus partidários afirmam veementemente que tais concepções são fruto de profunda reflexão filosófico-teológica, o que garantiria a originalidade da perspectiva. Na verdade, um de seus congressos no Brasil chegou a receber o tema: “Um Novo Deus no Mercado”. Contudo, uma breve retrospectiva nos mostrará que o ensino do Teísmo Aberto encontra precedentes em velhas propostas refutadas a muito pelo cristianismo histórico.

4.1 O teísmo aberto e a filosofia grega

De acordo com Lopes (2008, p. 12), “Algumas das idéias da Teologia Relacional têm uma impressionante semelhança com as especulações dos filósofos gregos”, como por exemplo, “o livre-arbítrio libertário” que traz “a idéia de que o arbítrio humano é completamente independente de forças externas e internas e, portanto, totalmente livre em tomar decisões. Isso ocorre porque o mundo e a história são governados pelo acaso”.

Há também o conceito da “limitação de Deus”. “Os deuses da mitologia grega, cantados na Odisséia e na Ilíada de Homero, são concebidos como seres finitos e limitados, que não governam o mundo de acordo com sua vontade, mas espreitam os homens e suas decisões, intervindo algumas vezes” (LOPES, 2008, p. 12).

Por fim, Lopes cita “o conceito de um futuro aberto e indeterminado” onde “encontramos a idéia de um mundo autônomo, funcionando por si mesmo, já que não havia deuses que determinassem seu curso, e visto que as decisões humanas eram imprevisíveis”. Tais idéias, como esposadas acima, “[...] podem ser encontradas em filósofos como Tales, Epicuro, Platão e Aristóteles, para mencionar alguns” (LOPES, 2008, p. 13), e mantêm plena correspondência com a visão aberta de Deus.

4.2 O teísmo aberto e o arminianismo

Apesar de tantas semelhanças entre os conceitos do Teísmo Aberto e da filosofia grega, para Lopes, “A maior influência na Teologia Relacional, sem dúvida é o arminianismo” (2008, p. 13). Segundo ele:

Podemos afirmar inclusive que ela é um desenvolvimento lógico do arminianismo, ou ainda, o arminianismo levado às suas últimas consequências [...] O ponto central do arminianismo é que a salvação depende da decisão humana. É o homem, com seu livre-arbítrio, quem decide o seu futuro e, portanto, o futuro da raça humana. A salvação foi dada por Deus mas ela só é eficaz se o homem decidir aceitá-la.” (LOPES, 2008, pp. 13, 15)

Em seu livreto “Os cinco pontos do calvinismo”, Seaton (pp. 3, 4) faz distinção entre a visão calvinista e a arminiana, relacionando os cinco pontos do arminianismo da seguinte maneira: “1. Livre-arbítrio, ou capacidade humana [...] 2. Eleição condicional [...] 3.Redenção universal, ou expiação geral [...] 4. A obra do Espírito Santo na regeneração limitada pela vontade humana [...] 5. Cair da graça”. A este respeito, Lopes (2008, p. 15.) escreve: “A Teologia Relaconal concorda com praticamente todos os pontos da interpretação arminiana da salvação com exceção daquele que fala da presciência de Deus [eleição condicional], que Deus anteviu a escolha dos que haveriam de ser salvos”.

4.3 O teísmo aberto e o socinianismo

De acordo com Lopes (2008, p. 16), Socinianismo “[...] é o nome que se dá a outra corrente teológica do século XVI originada nas idéias dos italianos Lélio Socínio (1525-1562) e seu sobrinho Fausto Socínio (1539-1604)” os quais “[...] negavam em seus escritos a deidade de Cristo, Sua morte vicária na cruz e a imputação da Sua justiça aos pecadores arrependidos. Suas idéias eram tão heréticas que foram condenadas pelos católicos e pelos protestantes”.

A similaridade entre estas duas visões é justamente o trato dispensado para com a presciência divina.

[...] Lélio e Fausto argumentaram que os calvinistas estavam, a princípio, logicamente corretos em dizer que o conhecimento que Deus tem do futuro se baseia no fato que o próprio Deus havia determinado tudo o que vai acontecer. Deus sabe as coisas que vão acontecer porque Ele mesmo determinou essas coisas. Todavia, eles prosseguiram a argumentar que os arminianos estão corretos quando dizem que é inadmissível pensar que Deus determinou tudo que vai acontecer, pois isso anula a liberdade humana. Logo, para que se possa preservar a plena liberdade do homem, é preciso negar não somente que Deus preordenou as decisões livres de agentes livres, mas também que Deus conhece de antemão quais serão tais decisões. E assim, os socinianos foram além do calvinismo e do arminianismo, negando a soberania de Deus (calvinistas) e também a Sua presciência (arminianos) [...] É exatamente esse o ensino da Teologia Relacional quanto à presciência de Deus [...] A semelhança é notável, até mesmo nos detalhes. Os socinianos diziam que a onisciência de Deus significava que Deus conhecia tudo o que era possível de ser conhecido. Como as decisões livres dos seres humanos eram impossíveis de serem conhecidas – exatamente porque eram livres – Deus não podia ter conhecimento delas. Os teólogos relacionais argumentam da mesma forma, redefinindo a onisciência de Deus de maneira similar” (LOPES, 2008, pp. 16, 17, 18.).

A conclusão é óbvia: “Se o homem tem livre-arbítrio e as coisas podem ser diferentes, Deus não pode ser onisciente” (CLARK, 2010, p. 52). Socinianos e Teístas Abertos preferiam resguardar a liberdade humana em detrimento da onisciência divina.

4.4 O teísmo aberto e a teologia do processo

O Teísmo Aberto também possui laços mais fortes do que gosta de admitir com a corrente teológica que atende pelo nome de Teologia do Processo.

Existe [...] uma semelhança visível entre a relação de Deus com o tempo defendida pela Teologia Relacional e aquela da Teologia do Processo. É verdade que os teólogos relacionais criticam a Teologia do Processo; todavia, não conseguiram se distanciar o suficiente para evitar a sua influência [...] De acordo com o cristianismo clássico, o Deus eterno criou o tempo e vive fora dele. Dessa forma, ele pode contemplar simultaneamente o passado, o presente e o futuro, como se fossem janelas ou telas abertas diante dEle. A Teologia do Processo nega esse conceito e defende que a realidade está em processo de mudança constante e que Deus evolui e progride dentro dessa realidade. Os teólogos relacionais admitem que Deus vive no tempo, mas discordam que isso faça parte essencial da Sua existência. Afirmam que ele optou por viver no tempo para poder Se relacionar de forma amorosa e significativa com Suas criaturas [...] apesar das críticas à Teologia do Processo, a Teologia Relacional afirma que Deus vive dentro do tempo, sujeito ao passar do tempo e às mudanças que isso proporciona. Ao final, temos de lidar com um Deus que, à nossa semelhança, aprende e evolui com o passar do tempo e não pode saber com exatidão o que nos aguarda no futuro. (LOPES, 2008, pp. 19,20).

Percebe-se com isso que o atributo divino da imutabilidade é completamente ignorado, prejudicando assim a perfeição da deidade, pois, como tem sustentado a ortodoxia cristã ao longo dos séculos, “Se o ser de Deus possui toda a perfeição possível, então qualquer mudança nele deve ser para a pior. Por ser imutável, não pode piorar. E por deter toda a perfeição, ele não tem necessidade de se alterar ou passar por um desenvolvimento” (CHEUNG, 2008, p. 84). Estariam os defensores da visão aberta e da teologia do processo dispostos a sustentar a idéia de que o deus a quem cultuam, em virtude de seu desenvolvimento, pode estar pior hoje do que a dois mil anos atrás? Tal possibilidade deve ser admissível em seus sistemas de pensamento.

Outra semelhança é “[...] a crítica de que a teologia cristã clássica foi influenciada por idéias da filosofia grega quanto a formulação da doutrina de Deus” (LOPES, 2008, p. 21), o que constitui grande ironia, já que o Teísmo Aberto, como supracitado, importa para seu corpo doutrinário uma gama de conceitos da visão grega. Ambas as posições, Teologia do Processo e Teísmo Aberto, defendem também:

[...] uma reformulação da doutrina clássica a respeito de Deus. A onisciência de Deus deve ser entendida como Seu conhecimento de tudo que pode ser conhecido – menos o futuro que ainda não aconteceu. A onipotência é entendida como poder perfeito, mas Deus não tem monopólio dele. Ele tem todo o poder possível a um ser. Não que Seu poder seja ilimitado. Ele é somente o maior. Portanto, Deus nunca pode determinar um evento, ou que alguma coisa aconteça irreversivelmente. Seu poder é coercivo, nunca determinativo. Todas essas idéias são também defendidas pelos teólogos relacionais” (LOPES, 2008, pp. 21, 22).

5 ASPECTOS PRÁTICOS DO TEÍSMO ABERTO

Veja o Deus de amor do Teísmo Aberto em ação. Imagine a cena: um homem viciado em crack sai pelas ruas com uma arma na mão; ele quer mais dinheiro para sustentar seu vício. Numa rua sem movimento e mal iluminada, uma jovem caminha rumo à estação de metrô. Ela se atrasou no trabalho e saiu mais tarde que o habitual. O encontro é inevitável e Deus assiste tudo. Repentinamente, o homem saca a arma. A jovem tenta fugir e ele dispara. Ela cai morta e ele vai embora com o dinheiro, encerrando assim o trágico episódio.

Segundo o Teísmo Aberto, Deus nada podia fazer, pois, se o fizesse, violaria a liberdade (livre-arbítrio) daqueles agentes livres. Deus não sabia o que aconteceria, pois haviam muitas ações livres implícitas na questão e tudo o que Deus conhece são as possibilidades. Aquilo machucou profundamente o coração de Deus e ele certamente estava torcendo para que nada de mal acontecesse, mas não havia nada que Ele pudesse fazer, senão lamentar angustiadamente. “E quanto ao propósito? Deve haver algum propósito em todo este caso lamentável.” – alguém perguntaria. O deus do Teísmo Aberto diz: “Não! Foi tudo uma fatalidade”.

Bruce A. Ware (2010, pp. 13, 14), ilustrando a visão do “Teísmo Aberto” acerca do sofrimento, escreve:

Quando a tragédia entrar em sua vida, por favor, não pense que Deus tem algo a ver com isso! Deus não deseja que a dor e o sofrimento ocorram e, quando isso acontece, ele se sente tão mal com a situação como aqueles que estão sofrendo. Não pense que, de alguma maneira, essa tragédia deva cumprir algum propósito final. É bem possível que não seja assim! O mal que Deus não deseja acontece a todo momento e, com freqüência, não serve para nenhum bom propósito. Porém, quando sobrevém a tragédia, podemos confiar que Deus está conosco e nos ajuda a reconstruir o que se perdeu. Afinal, de uma coisa temos certeza, a saber: Deus é amor. Então, embora não possa evitar que uma boa parcela de coisas ruins aconteça, ele sempre estará conosco quando elas acontecerem.

6 O TEÍSMO ABERTO VERSUS A SAGRADA ESCRITURA

Será que a Bíblia se engana ao relatar o episódio de Atos 4.27-28? “De fato, Herodes e Pôncio Pilatos reuniram-se com os gentios e com o povo de Israel nesta cidade, para conspirar contra o teu santo servo Jesus, a quem ungiste. Fizeram o que o teu poder e a tua vontade haviam decidido de antemão que acontecesse” (NVI).

Não lemos aqui que todo o sofrimento que sobreviera a Jesus fora determinado por Deus? Deus estava por trás de tudo isso, inclusive das ações, supostamente “livres”, dos ímpios. Como Pink (2001, p. 28) bem expressou:

Deus sabia da crucificação do Seu Filho e a predisse muitas centenas de anos antes que Ele se encarnasse, e isso, porque, segundo o propósito divino, Ele era o Cordeiro morto desde a fundação do mundo. Portanto, lemos que Ele “... foi entregue pelo determinado conselho e presciência de Deus...” (Atos 2:23).

É importante destacar aqui que tal acontecimento não fora destituído de propósito, mas pelo contrário, foi por meio deste sofrimento que recebemos a salvação!

E o que dizer sobre o diálogo entre Deus e Ananias a respeito do apóstolo Paulo? Conforme Atos 9.15-16, lemos: “Mas o Senhor disse a Ananias: ‘Vá! Este homem é meu instrumento escolhido para levar o meu nome perante os gentios e seus reis, e perante o povo de Israel. Mostrarei a ele o quanto deve sofrer pelo meu nome” (NVI). Como, pela visão do “Teísmo Aberto”, responder a passagens como essas sem desrespeitar (ou até mesmo violentar) o texto bíblico? Só podemos afirmar com Ware (2010, p. 21) que:

A visão aberta rebaixa Deus, pura e simplesmente falando. Tenta tornar mais significativa a escolha e ação humanas, a custa da própria grandeza e glória de Deus. O Deus do teísmo aberto é muito limitado, simplesmente por ser menos que o majestoso, pleno conhecedor, todo-sábio Deus da Bíblia.

O deus do Teísmo Aberto não sabe e não pode. Está cego quanto ao futuro. Tem a boca fechada e as mãos amarradas para não interferir nas livres escolhas (livre-arbítrio) de seus agentes livres. Está limitado pelo poder das suas criaturas.

O Teísmo Aberto tira o controle remoto do mundo das mãos de Deus e o coloca nas mãos dos homens. É o antropocentrismo entronizado. É um deus extremamente debilitado e não o Deus das Escrituras, sobre o qual lemos: “Porque o domínio é do Senhor, e ele reina sobre as nações” (Sl 22.28); “Mas o nosso Deus está nos céus; ele faz tudo o que lhe apraz” (Sl 115.03). Sobre Sua onisciência: “[...] Eu sou Deus, e não há outro semelhante a mim; que anuncio o fim desde o princípio, e desde a antiguidade as coisas que ainda não sucederam; que digo: O meu conselho subsistirá, e farei toda a minha vontade” (Is 46. 9,10). Eis aqui mais uma visível distinção, pois, o Deus das Escrituras “[...] reivindica para Si a presciência sobre os acontecimentos futuros, desafiando os deuses falsos (Is. 41:22)” (DAGG, 2003, p. 53), enquanto o Deus do Teísmo Aberto permanece na ignorância. Como disse C. S. Lewis (2008, p. 226): “Todos que crêem em Deus acreditam que ele sabe o que eu e você faremos amanhã”.

Buscando resguardar a plena liberdade da criatura, a visão aberta de Deus acaba restringindo a liberdade do Criador. É exatamente neste ponto que o Teísmo Aberto mais uma vez se mostra deficiente, pois em lugar algum nas Escrituras lemos sobre uma criatura plenamente independente de seu Criador. Para sustentar tal coisa, Clark (2010, p. 53) afirma que a própria “[...] doutrina da criação deve ser abandonada”, pois, “Uma criação ex nihilo estaria completamente no controle de Deus”, visto que “Forças independentes não podem ser forças criadas, e forças criadas não podem ser independentes”. Sendo assim, mesmo a Revelação Geral é suficiente para mostrar a necessidade de um Deus Soberano e sustentador de todas as coisas (Heb. 1:3).

Reymond (2011, p. 354), por exemplo, baseado nos estudos em biometereologia de Sallie Tisdale (“Weather’s Unseen Power”, Outside [Dezembro 1995]) aponta para o fato de como o clima, o qual é mantido e determinado por Deus (Gên 8:22), pode influenciar os seres vivos, inclusive em suas decisões, e então escreve (em resposta a doutrina do livre-arbítrio sustentada por Pinnock):

[...] assumindo, novamente por causa do argumento apenas, que a vontade do homem seja normalmente livre, mesmo Pinnock não negará que causas desconhecidas a eles podem influenciar e mesmo forçar pessoas a escolherem um ao invés de outro curso de ação. O clima, por exemplo, – no mínimo, às vezes desconhecido para nós – afeta como sentimos, o que, por sua vez, influencia nossas escolhas. Doenças presentes em nosso corpo das quais estamos inconscientes (por exemplo, tumores cerebrais) podem nos levar, enquanto presumimos o tempo todo nossa sanidade, a tomar decisões irracionais. Os pais, muito tempo depois de mortos, através de seus ensinos e exemplos em nossos anos de formação, freqüentemente agora, sem que estejamos cientes disso, ainda exercem uma poderosa e determinante influência sobre nós em nossos anos adultos (Prov. 22:6). O problema que se levanta é este: como pode qualquer homem conhecer com certeza, quando escolhe um curso específico de ação, que era completamente livre de todas estas causações externas ou internas? [2]

A este respeito, Clark (apud REYMOND, 2011, p. 354) declara:

A conclusão é evidente, não é? Para sabermos que nossa vontade não é determinada por qualquer causa, devemos conhecer todas as causas possíveis no universo inteiro. Nada poderia escapar de nossas mentes. Ser consciente do livre-arbítrio, portanto, requer onisciência. Desde que não há consciência do livre-arbítrio: o que seus expoentes tomam como consciência do livre-arbítrio é simplesmente a inconsciência do determinismo. [3]

No século XVI, Lutero travou sua própria batalha quanto à questão do livre-arbítrio. Pink (2001, p. 39) registra que “Numa de suas cartas a Erasmo, disse Lutero: ‘As tuas idéias sobre Deus são demasiado humanas”. Podemos dizer a mesmíssima coisa no que se refere à teologia sustentada pelo Teísmo Aberto.

Portanto, O deus do Teísmo Aberto só nos deixa o desespero, pois um deus que não seja o “Todo-Poderoso” que “reina” (Ap 19.6; 15.3 - ó Rei dos séculos) e conhecedor de “todas as coisas” (1 Jo 3.20 - inclusive “as coisas que ainda não sucederam” - Is 9.10]) não é digno de confiança nem tem autoridade para fazer cumprir suas promessas. “Quanto à visão aberta, só se pode dizer o seguinte: ‘O Deus deles é limitado demais!’” (WARE, 2010, p. 20).

Como Pink (2001, pp. 40, 41) escreveu, “Um Deus cuja vontade é impedida, cujos desígnios são frustrados, cujo propósito é derrotado, nada possui que se lhe permita chamar Deidade, e, longe de ser digno objeto de culto, só merece desprezo”.

7 CONCLUSÃO

Concluímos, por tudo que foi apresentado até aqui, que o Teísmo Aberto confronta as doutrinas basilares do cristianismo histórico, contradizendo o claro ensino das Escrituras e apresentando uma perspectiva acerca de Deus que está muito aquém daquela sustentada pela ortodoxia cristã.

Deus disse a Moisés: “Eu Sou o que Sou” (Ex 3.14), e é assim que devemos adorá-Lo; não tentando fazer de Deus aquilo que Ele não é ou o que queremos que Ele seja. Continua pertinente e atual a acusação de Pink de que: “Os idólatras do lado de fora da cristandade fazem “deuses” de madeira e de pedra, enquanto que os milhões de idólatras que existem dentro da cristandade fabricam um Deus extraído de suas mentes carnais” (PINK, 2001, p. 40).

Devemos atentar para o fato de que aquele que adora outros deuses, por mais amorosos que possam parecer estes outros deuses, está sujeito ao juízo do Senhor, que diz: “Certamente perecerá” (Dt 8.19), e o “profeta que tiver a presunção de falar [...] em nome de outros deuses, esse profeta morrerá” (Dt 18.20).

“Não terás outros deuses diante de mim” (Ex 20.3). Este é o mandamento mais quebrado e o pecado mais cometido em nossa geração. O Teísmo Aberto tem sido responsável por estimular e propagar tal pecado, devendo ser rejeitado como a teologia de um outro “deus”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAVINCK, H. Teologia Sistemática. Santa Bárbara d’Oeste: Socep, 2001.

CHEUNG, V. Introdução à Teologia Sistemática. São Paulo: Arte Editorial, 2008.

CLARK, G. H. Deus e o Mal: o problema resolvido. Brasília: Editora Monergismo, 2010.

DAGG, J. L. Manual de Teologia. São José dos Campos: Fiel, 2003.

LEWIS, C. S. Cristianismo Puro e Simples. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

LOPES, A. N. Teologia Relacional: Suas origens, seus ensinos, suas conseqüências. São Paulo: Ed. PES, 2008.

PINK, A. W. Os Atributos de Deus. São Paulo: Ed. PES, 2001.

REYMOND, R. L. A New Systematic Theology of the Christian Faith. Nashiville: Thomas Nelson, 2011.

SEATON, W. J. Os Cinco Pontos do Calvinismo. São Paulo: Ed. PES.

WARE, B. A. Teísmo Aberto: a teologia de um deus limitado. São Paulo: Vida Nova, 2010.


[1] Os textos bíblicos utilizados aqui foram extraídos, em sua maioria, de BÍBLIA SAGRADA. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2. ed. rev. e atual. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2009. Aqueles que divergirem desta tradução serão devidamente identificados.

[2] But assuming, again For the sake of argument only, that man’s will is normally free, even Pinnock will not deny that causes unknown to them can influence and even force people to choose one rather than another course of action. The weather – at least sometimes unknown to us – affects how we fell, for instance, which in turn influences our choices. Diseases present in our body of which we are unaware (for example, brain tumors) can cause us, while we presume all the while our sanity, to make irrational decisions. Parents long dead, through their teaching and example in our formative years, often now without our being aware of it, still wield a powerful determining influence upon us in our adult years (Prov. 22:6). The problem that arises is this: How can any man know for sure, when he has chosen a specific course of action, that he was completely free from all such external or internal causation?

[3] The conclusion is evident, is it not? In order to know that our wills are determined by no cause, we should have to know every possible cause in the entire universe. Nothing could escape our mind. To be conscious of free will therefore requires omniscience. Hence there is no consciousness of free will: what its exponents take as consciousness of free will is simply the unconsciousness of determinism.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

O MARCIONISMO E O CÂNON

MESQUITA NETO, Nelson Ávila (E, T. C. S.)

1 INTRODUÇÃO

Voltaremos nossa atenção neste trabalho para o movimento cismático oriundo do segundo século que ficou conhecido como Marcionismo. Explanaremos os desafios gerados a partir das idéias de Marcião e suas conseqüências para a cristandade de então.

Principiaremos com uma apresentação das principais características do pensamento marcionita, e em seguida abordaremos o modo como a igreja reagiu diante desta nova situação.

Sabemos que de tempos em tempos velhas idéias, que a muito pareciam mortas ou adormecidas, costumam reaparecer, com maior ou menor força, travestidas de um espírito de originalidade em busca de novos adeptos. Objetivamos com o presente estudo prevenir os cristãos contemporâneos contra estes erros teológicos que, embora pareçam distantes e insustentáveis na presente era, ainda podem facilmente ser percebidos em certa medida, nos discursos de muitos líderes da atualidade.

2 O PENSAMENTO MARCIONITA

O nome Marcionismo deriva de seu fundador, Marcião (110 – 160 d. C.), ou Márciom como pode ser encontrado em alguns livros de história. Este, “[...] era filho do bispo de Sinope, na região do Ponto” (GONZÁLES, 2009, p. 98), todavia passou a sustentar uma posição teológica bem diferente da ortodoxia cristã, o que o levou a ser excomungado no ano 144 d. C.

Sobre este período, Gonzáles (2009, p. 99) escreve: “No ano 144, Márciom foi a Roma, onde conseguiu vários seguidores, e até alguns pensaram em fazê-lo bispo. Mas com o tempo, o resto dos cristãos decidiu que seus ensinos contradiziam a fé, e Márciom criou sua própria igreja, que perdurou por vários séculos”.

Segundo Hägglund (2003, p. 28), a doutrina de Marcião “[...] é similar ao gnosticismo em vários pontos”, o que teria levado a sua inclusão “[...] entre os gnósticos pelos Pais Eclesiásticos”. A este respeito, Cairns (2008, p. 84) diz que “Marcião e seus seguidores parecem ter sido os mais influentes dos grupos ligados ao gnosticismo”.

No que diz respeito a seu ensino, Marcião “[...] parece ter sentido duas fortes antipatias: contra este mundo material e contra o judaísmo. Portanto, sua doutrina combina estes dois elementos” (GONZÁLES, 2009, p. 99). Conforme Cairns (2008, p. 84), “Por entender que o judaísmo era mau, odiava a Bíblia Hebraica e o Javé nela apresentado”, chegando a “[...] estabelecer um contraste radical entre o Antigo e o Novo Testamento” (GRANCONATO, 2010, p. 75).

Marcião sustentava uma visão dualista em sua teologia. Para ele, Jeová, o Deus dos hebreus, era “[...] um ser mau e vingativo, desejoso de guerras, inconstante nos sentimentos, criador da matéria, autor do mal e originador da Lei” (GRANCONATO, 2010, p. 76), tendo outros dois planos abaixo de si, onde encontravam-se os anjos e a matéria. Porém, havia ainda um Deus bom e verdadeiro, o Pai de amor revelado em Jesus, o qual ficava num plano superior ao de Jeová. Para Marcião, conforme registrado por Gonzáles:

Foi Jeová que fez este mundo. O propósito do Pai não era que houvesse um mundo como este, com todas as suas imperfeições, mas que houvesse um mundo puramente espiritual. Mas Jeová, seja por ignorância ou por maldade, fez este mundo, e nele colocou a humanidade (2009, p. 99).

Como seu entendimento, seguindo as concepções gnósticas, era o de que a matéria era má, ele interpretava o papel de Cristo na história da redenção como tendo sido enviado pelo Pai e manifestado como homem “[...] para abolir a Lei e os profetas, bem como todas as obras do perverso criador” (GRANCONATO, 2010, p. 76).

Citando o historiador Roque Frangiotti, Granconato (2010, p. 76) nos informa que no conceito Marcionita, Cristo teria se revestido de uma corporeidade apenas aparente, “[...] pois se assumisse a matéria ficaria sob o poder do criador maligno e não alcançaria seu alvo final que era libertar as almas de todos os homens do plano material”. Com isso, além de pregar “[...] a forma mais crua de universalismo”, pois, no conceito Marcionita, como Matos (apud GRANCONATO, 2010, p. 76) bem esclarece, “O Deus verdadeiro perdoa todos os pecados e assim toda a humanidade será salva”, visto que “A salvação é do espírito, não do corpo”, Marcião ainda declara abertamente seu posicionamento Docetista.

Por seus ensinamentos, ele acabou angariado a antipatia de muitos cristãos, dentre eles, alguns memoráveis, como é o caso do respeitável bispo de Esmirna, do qual se lê que “Marcião [...] certo dia, indo ao encontro de são Policarpo, lhe diz: ‘Reconhece-nos, Policarpo!’ Este respondeu a Marcião: ‘Eu reconheço, reconheço o primogênito de satanás.’ (QUINTA, 2002, p. 156).

Além de Policarpo, “Justino, particularmente, revela especial repugnância pelos ensinos desse herege, alistando-o entre os ‘ateus, ímpios, injustos e iníquos’ com quem os cristãos não tinham nenhuma comunhão”, acreditando ainda que “Marcião propagava suas doutrinas com o auxílio de demônios” (GRANCONATO, 2010, p. 75), conforme escreveu:

Por fim, um tal Marcião, natural do Ponto, está agora mesmo ensinando seus seguidores a crer num Deus superior ao criador e, com a ajuda dos demônios, fez com que muitos, pertencentes a todo tipo de homens, proferissem blasfêmias e negassem o Deus Criador do universo, admitindo, em troca, não sabemos que outro deus, ao qual, supondo maior, se atribuem obras maiores do que àquele (JUSTINO apud GRANCONATO, 2010, p. 75).

Para defender sua doutrina, Marcião abandonou toda a revelação Veterotestamentária por consistir, nos moldes de sua compreensão, na palavra de um deus inferior (o Jeová dos judeus), rejeitando ainda aqueles escritos Neotestamentários que discordavam de seus ensinamentos, criando assim seu próprio Cânon, que sustentava como único Evangelho autorizado uma versão do “[...] Evangelho de Lucas (excetuando os capítulos 1 e 2, por serem judaicos demais) e as epístolas de Paulo (menos as epístolas pastorais)” (FISHER In COMFORT, 1998, p.106).

No entendimento marcionita, Paulo era “[...] o único que, entre os apóstolos, havia compreendido a verdadeira mensagem de Jesus”, sendo os demais “[...] judeus demais para entendê-la” (GONZÁLES, 2009, p. 100). Marcião considerava todas as citações do Antigo Testamento encontradas em Lucas e nas cartas paulinas como tendo sido inseridas nos textos sagrados por judaizantes que “[...] tratavam de adulterar a mensagem” (GONZÁLES, 2009, p. 100).

Nas palavras de Gonzáles, outros ensinos negados por Marcião, como pode-se concluir logicamente dos já supracitados, era “[...] a criação, a encarnação e a ressurreição final” (2009, p. 100). Por ter organizado uma igreja independente, “[...] com seus bispos rivais aos da outra igreja”, Gonzáles (2009, p. 100) entende que seus ensinos, portanto, “[...] tendiam a se perpetuarem”.

3 O ATAQUE MARCIONITA E A REAÇÃO DA IGREJA

A teologia de Marcião representou um dos primeiros ataques sérios a autoridade e inspiração das Sagradas Escrituras. Diferentemente dos demais grupos gnósticos, que inventavam “[...] toda uma série de seres espirituais, [...] o que Márciom propôs era muito mais simples” (GONZÁLES, 2009, p. 99), e justamente por suas doutrinas parecerem tão simples e lógicas, “[...] a propaganda marcionita dentro do resto da igreja era impressionante” (GONZÁLES, 2009, p. 100).

É interessante notarmos que a arma utilizada pelos Pais da igreja para reagir à heresia Marcionita fora justamente a reafirmação da Palavra de Deus como única e final autoridade inerrante e infalível.

Nenhuma Escritura é de particular interpretação: A Bíblia “toda” é “todo” o conselho de Deus e podemos chegar ao entendimento de suas partes mais obscuras comparando-as com suas partes mais claras.

Embora não houvesse ainda a preocupação em estabelecer um Cânon como “oficial” para a comunidade, os cristãos do primeiro século faziam uso dos mesmos textos bíblicos que nós hoje (somando a estes os escritos dos Pais apostólicos, que ainda hoje nos servem, embora sem a prerrogativa de inerrância e autoridade), e tinham a firme convicção de que a Verdade é preservada por Deus numa tradição pública e verificável por todos, e esta tradição é resguardada pelos bispos legitimamente instituídos por Deus, tendo sido estes ordenados mediante algum apóstolo ou outros bispos originalmente ordenados por estes mesmos apóstolos.

Quanto ao Antigo Testamento, “[...] todos, exceto os gnósticos e os marcionitas, concordavam que devia fazer parte das Escrituras” (GONZÁLES, 2009, p. 101). Ferreira e Myatt (2007, p. 130) atestam que “os livros do Antigo Testamento protestante já eram aceitos pelos judeus antes do tempo de Jesus”, e acrescentam: “A evidência dos Evangelhos apóia a noção de que o Antigo Testamento usado por Jesus era igual ao que temos hoje”.

No que diz respeito ao Novo Testamento, Ficher (In COMFORT, 1998, p.102) declara que “O princípio que determina o reconhecimento da autoridade dos escritos canônicos do Novo Testamento foi estabelecido dentro do próprio conteúdo desses escritos”. Ele aponta, para comprovação de sua posição, na direção das “[...] repetidas exortações para a leitura pública das mensagens apostólicas” em passagens como 1 Tessalonicenses 5:27 e Colossenses 4:16, por exemplo; e a reinvidicação autoral de comunicadores da Palavra de Deus, que facilmente se pode encontrar em textos como 1 Tessalonicenses 2:13, 1 Coríntios 14:37 e 2 Pedro 3:15-16 (FISHER In COMFORT, 1998, pp.102, 103).

Ferreira e Myatt nos garantem três, dentre alguns dos critérios utilizados no processo gradual de fixação do Cânon, e os dispõem da seguinte maneira: “(1) Apostolicidade. Critério que, em última instância, veio a estabelecer o cânon” (2007, p. 95), e que consistia no fato de que os textos bíblicos, para serem considerados inspirados, deveriam ter sido escritos por um apóstolo ou alguém (companheiro imediato) ligado aos apóstolos.

“(2) Reconhecimento de sua autoridade pela igreja primitiva” (2007, p. 95). Lembrando que a idéia aqui não é a de que uma igreja (concilio) infalível determina o Cânon bíblico, e sim que uma igreja falível, que milita contra o pecado no mundo, é firmada sobre a Palavra de Deus infalível, a qual se apresenta e é reconhecida por esta. Como escreveu Sproul, “[...] a igreja não ‘criou’ o Cânon. A igreja identificou, reconheceu e se submeteu ao Cânon das Escrituras. O termo usado pela igreja em concílio foi recipimus, que significa: ‘nós recebemos’” (apud FERREIRA & MYATT, 2007, p. 129).

Bruce (2010, p.36) também asseverou:

Uma coisa precisa ser afirmada com toda ênfase: os livros do Novo Testamento não se tornaram escritos revestidos de autoridade para a Igreja porque foram formalmente incluídos em uma lista canônica; pelo contrário, a Igreja incluiu-os no cânon porque já os considerava divinamente inspirados, reconhecendo neles o valor inato e, em geral, a autoridade apostólica, direta ou indireta.

Por fim, “(3) A harmonia com os livros dos quais não havia dúvidas” (FERREIRA & MYATT, 2007, p. 93). Um exemplo deste último é a epístola aos Hebreus, da qual não se sabe a autoria, mas é perfeitamente compatível com a mensagem evangélica (apostólica) do Novo Testamento.

Estes critérios foram de grande valia para os cristãos primitivos, e o reconhecimento oficial dos livros canônicos auxiliou a igreja a lidar com toda sorte de proposições teológicas que surgiram desde então.

CONCLUSÃO

Concluímos, portanto, que, ao sustentar firmemente a autoridade da Palavra de Deus, os cristãos dos primeiros séculos puderam permanecer firmes nos ensinamentos de Cristo e dos apóstolos, e assim manter a igreja longe dos desvios doutrinários ensinados pelo Marcionismo.

Ferreira e Myatt rejeitam como sendo errônea, “[...] A idéia de que o gnosticismo, o marcionismo e o montanismo obrigaram a igreja a fixar o cânon do Novo Testamento” (2007, p. 93). Contudo, podemos afirmar que tais movimentos contribuíram de alguma maneira para a aceleração do processo canônico, e concordar com Ficher (In COMFORT, 1998, p.105) quando diz que “O herético Marcião, com seu ato de definir um cânon limitado para uso próprio (c. 140 d.C.), na realidade instigou os crentes ortodoxos a se manifestarem sobre o assunto”.

Hoje, quando muitos se levantam dentro da própria igreja atacando a autoridade e inspiração das Sagradas Escrituras, como o fazem os adeptos da teologia liberal e neo-ortodoxa, ou selecionam para si uma porção de textos bíblicos que supostamente apóiam suas vãs filosofias e falsos ensinamentos, como no caso dos neopentecostais e carismáticos que constantemente se valem dos mesmos textos fora de contexto para propagarem sua mensagem de prosperidade, a fé na Palavra infalível do nosso Deus deve ser mais uma vez reafirmada para que a luz do Evangelho resplandeça em meio às trevas do evangelicalismo moderno, cada vez mais pragmático, secularizado e, conseqüentemente, apóstata.

É interessante recordar que nunca houve na história da igreja um concílio que tenha se reunido com o objetivo de elaborar uma comissão para investigação da canonicidade dos textos bíblicos, ainda assim, no final do séc. V já não havia qualquer dúvida acerca da inspiração dos 27 livros que compõem o Novo Testamento. Sempre, mesmo que de maneira não oficialmente organizada, existira na igreja cristã um “Padrão” (Cânon)[1] que a guiasse e mantivesse a salvo dos falsos ensinos de satanás e seus mensageiros. Apeguemo-nos, portanto, como fizeram nossos pais espirituais no passado, a este “Padrão” (Cânon) e, frente às mentiras deste mundo corrompido e idólatra, declaremos com Agostinho (apud FERREIRA & MYATT, 2007, p. 91): “O que a minha Escritura diz, eu digo”. Ainda se faz pertinente ouvir o velho conselho de Paulo a Timóteo:

“Tu, porém, permanece naquilo que aprendeste, e de que foste inteirado, sabendo de quem o tens aprendido, e que desde a infância sabes as sagradas letras, que podem fazer-te sábio para a salvação, pela fé que há em Cristo Jesus. Toda Escritura é divinamente inspirada e proveitosa para ensinar, para repreender, para corrigir, para instruir em justiça; para que o homem de Deus seja perfeito, e perfeitamente preparado para toda boa obra.” (2 Tim 3.14-17)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRUCE, F. F. Merece Confiança o Novo Testamento?. São Paulo: Vida Nova, 2010.

CAIRNS, E. E. O Cristianismo Através dos Séculos: uma história da igreja cristã. São Paulo: Vida Nova, 2008.

COMFORT, P. W (Ed.). A Origem da Bíblia. Rio de Janeiro: CPAD, 1998.

FERREIRA, F.; MYATT, A. Teologia Sistemática: uma análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual. São Paulo: Vida Nova, 2007.

GONZÁLES, J. L. Uma História Ilustrada do Cristianismo: a era dos mártires. São Paulo: Vida Nova, 2009.

GRANCONATO, M. Eles Falaram Sobre o Inferno: a doutrina da perdição eterna nos primeiros escritos cristãos. São Paulo: Arte Editorial, 2010.

HÄGGLUND, B. História da Teologia. Porto Alegre: Concórdia, 2003.

QUINTA, M. (Org.). Padres Apostólicos. Coleção Patrística. São Paulo: Paulus, 2002.


[1] A palavra Cânon derivada do hebraico, qenéh, e do grego, kanóni, que podem ser traduzidas por “vara de medir, régua ou padrão.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

POLICARPO DE ESMIRNA: Vida e Pensamento

MESQUITA NETO, Nelson Ávila (E. T. C. S.).

1 O BISPO DE ESMIRNA

Desde seu início, a igreja cristã esteve sob severa perseguição. Ferreira (2006, p. 23) destaca que “entre o fim do século 1.º e o começo do século 4.º, houve dez perseguições patrocinadas pelo Império Romano”. O 2.º século encontrava-se exatamente no centro deste período, e a política adotada na época para com o cristianismo era a de que “se alguém os acusava, e se negavam a abandonar sua fé, deviam ser castigados; mas se ninguém os acusava, o estado não devia empregar seus recursos para persegui-los” (GONZALES, 2009, p. 65).

Foi em meio a este momento histórico que emergiu a figura de Policarpo (c. 70-150). Como bem destacou Frangiotti (In QUINTA, 2002, p. 129), “[...] de sua infância, sua formação, sua família, ignoramos tudo”. Todavia, embora não tenhamos quaisquer detalhes destes anos de sua vida, temos algumas informações sobre a sociedade na qual se desenvolveu até chegar ao ofício de bispo em Esmirna, o que poderá nos ajudar a compreender melhor como foi formado o caráter deste grande homem.

Esmirna (hoje Izmir), localizada na Ásia Menor (atual Turquia), era uma cidade portuária a oeste de Éfeso. Sabemos que apesar de enfrentar os mesmos problemas supracitados, os cristãos possuíam ali uma igreja forte e muito respeitada. Das cartas endereçadas às sete igrejas no Livro de Apocalipse, a única a não ser encontrada em falta fora a igreja de Esmirna. Deveras, é belíssimo o testemunho a respeito desta igreja conforme descrito por João (Apocalipse 2:8-11), o qual é encerrado com a promessa: “Sê fiel até à morte, e dar-te-ei a coroa da vida [...] O vencedor de nenhum modo sofrerá dano da segunda morte”.

Também Inácio de Antioquia, outro a tornar-se mártir, tece grandes elogios na carta endereçada a ela[1]. Logo no início, ela é saudada como uma igreja “[...] repleta de fé e amor, à qual não falta nenhum dom”, e que é “caríssima a Deus”; Inácio ainda descreve aqueles irmãos como “sábios” e “perfeitos na fé imutável” (In QUINTA, 2002, p. 115).

Foi nessa igreja que, como escreveu Ferreira, “Policarpo foi formado, educado e feito bispo”. Todas as informações que temos a seu respeito “[...] surgem a partir de seu serviço pastoral, como bispo, à frente da comunidade” (2006, p. 24).

Frangiotti (In QUINTA, 2002, pp. 129, 130) atesta que é possível reconstruir a personalidade de Policarpo a partir de alguns testemunhos fidedignos, tais como “[...] as freqüentes referências de Irineu de Lião, seu discípulo”. Segundo Frangiotti, na própria “Carta aos Filipenses”, Policarpo “[...] revela toda a sua alma, seu coração compassivo” e “sua compreensão para com os fracos”.

É importante destacar ainda uma peculiaridade acerca da ordenação de Policarpo ao episcopado da igreja em Esmirna. Segundo algumas fontes históricas, ele teria sido ordenado pelos próprios apóstolos. Ferreira (2006, p. 25) aponta para dois testemunhos importantes acerca deste fato: 1) o de Tertuliano, o qual declara que “Policarpo teria sido ordenado [...] pelas mãos do próprio apóstolo João, ‘segundo a tradição daquela igreja, do mesmo modo que a igreja de Roma afirma que Clemente fora ordenado bispo por Pedro [o Apóstolo]’”; e 2) o testemunho de Irineu, o qual menciona que Policarpo “não apenas foi discípulo dos apóstolos e viveu familiarmente com muitos dos que tinham visto o Senhor, mas foi estabelecido bispo da Ásia, na igreja de Esmirna, pelos próprios apóstolos”. A simples declaração de tal fato, ainda de acordo com Irineu, teria “[...] levado à conversão muitos dos gnósticos” em Roma, quando Policarpo ali estivera, “na época do bispado de Aniceto”.

As informações mais claras, porém, das quais dispomos concernentes a Policarpo, não dizem respeito ao modo como viveu, mas, sim, ao modo como morreu. Uma carta escrita pela igreja de Esmirna, e enviada à igreja de Filomélio, descreve em “detalhes aterradores”, como expressa Olson (2009, p. 47), o que ficou conhecido como o “Martírio de Policarpo”. Nela, lemos sobre o modo como o bispo de Esmirna foi perseguido e como, espontaneamente, se deixou capturar. Está escrito que após ser encontrado, Policarpo mandou servir uma refeição aos seus captores, solicitando apenas uma hora para orar antes de ser conduzido às autoridades (In QUINTA, 2002, p. 149).

Diante do procônsul, Policarpo se manteve firme. Quando solicitado que declarasse “Abaixo os ateus!” (como eram chamados os cristãos por não adorarem os deuses pagãos), Policarpo olhou “[...] severamente toda a multidão de pagãos cruéis no estádio” e, apontando para eles, disse: “Abaixo os ateus!” (In QUINTA, 2002, p. 150). Incitado a amaldiçoar o Cristo, ele respondeu: “Eu o sirvo há oitenta e seis anos, e ele não me fez nenhum mal. Como poderia blasfemar o meu rei que me salvou?” (In QUINTA, 2002, pp. 150, 151). Desprezando, assim, a ameaça de ser lançado às feras, foi sentenciado à fogueira. Antes de ser queimado, orou, bendizendo a Deus por ter sido “[...] julgado digno deste dia e desta hora, de tomar parte entre os mártires”, e do cálice de Cristo, “[...] para a ressurreição da vida eterna da alma e do corpo, na incorruptibilidade do Espírito Santo” (In QUINTA, 2002, p. 153).

Ferreira (2006, p. 28, 29), citando Curtis, Lang & Peterson, destaca que “nos 150 anos seguinte [...], à medida que centenas de outros mártires caminharam fielmente para a morte, muitos foram fortalecidos pelos relatos do testemunho fiel do bispo de Esmirna”.

2 O LEGADO LITERÁRIO DE POLICARPO

De acordo com Frangiotti (In QUINTA, 2002, p. 132), “Policarpo teria escrito várias cartas destinadas às diversas comunidades”. Todavia, a única preservada, “parcialmente em grego e inteiramente em latim”, foi a endereçada aos filipenses. Esta carta, escrita em 110 d.C., embora simples, tem especial relevância pela proximidade de seu autor com os escritores do Novo Testamento. Cairns (2008, p. 63) afirma que Policarpo “pôde conhecer de perto a mente dos discípulos por ter sido discípulo de João”. De fato, Policarpo aponta para questões basilares do cristianismo, das quais a maioria dos Pais se desviaram naqueles dias, como é o caso de sua soteriologia fortemente marcada pela graça e não pelas obras, embora a caridade não houvesse perdido seu devido valor. Logo no início de sua carta ele escreve: “E vós sabeis que é pela graça que fostes salvos, não pelas obras, mas pela vontade de Deus, por meio de Jesus Cristo” (In QUINTA, 2002, p. 139).

Policarpo faz grande uso do Novo Testamento, tendo-o em posição igual ao Antigo, apontando freqüentemente para as epístolas paulinas. Cairns alista 60 citações do N. T. na Carta do bispo de Esmirna aos filipenses, sendo 34 destas dos escritos de Paulo (2008, p. 34). Segundo Ferreira (2006, p. 26), ele também “estava familiarizado com [...] o evangelho de Mateus, além de citar 1 Pedro, 1 João e Atos”.

Policarpo se preocupa em defender a encarnação, morte e ressurreição de Cristo, provavelmente refutando algum perigo das heresias docetistas e gnósticas (In QUINTA, 2002, p. 143, 144, 151). Para ele, o sacrifício de Jesus foi substitutivo (vicário). “Cristo Jesus [...] carregou nossos pecados em seu próprio corpo sobre o madeiro” (In QUINTA., 2002, p. 143, 144).

Ainda tratando da carta aos Filipenses, Granconato (2010, p. 87), em concordância com o pensamento de Héber Carlos de Campos, atesta que “pode-se facilmente detectar o embrião de uma doutrina que [...] desenvolveu-se ao longo dos séculos”, sendo incluída “em versões posteriores do Credo Apostólico (a partir do século IV)”, figurando no “[...] Credo de Atanásio (séculos V e VI)”, chegando mesmo a tornar-se “[...] afirmação credal comum nos diversos documentos da igreja, especialmente a partir do século VII”, a saber, “a doutrina de que, entre seu sepultamento e ressurreição, Cristo desceu a um lugar chamado Hades a fim de completar ali sua obra de salvação”. Todavia, não poderia deixar-se de mencionar que, em sua carta, ele não chega a desenvolver “[...] os contornos exatos do seu pensamento sobre a descida de Cristo ao Hades” (GRANCONATO, 2010, p. 88).

Voltando olhos agora para a narrativa de seu suplício, parece ser possível inferir uma firme concepção da doutrina da Trindade; isto é evidenciado em sua oração final diante da sentença à fogueira, onde confere glória ao Pai, com Jesus Cristo [o Filho] e o Espírito, “[...] agora e pelos séculos futuros. Amém” (In QUINTA, 2002, p. 153).

A intenção principal, entretanto, de sua carta é fortalecer os irmãos em meio às perseguições, exortando-os a que vivam vidas santas, castas e que glorifiquem a Deus; instruindo-os a respeitarem as autoridades constituídas, tais como os presbíteros e os diáconos, na realidade eclesiástica, e “[...] os reis, autoridades e príncipes”, na esfera civil, pelos quais deveriam orar sempre (In QUINTA, 2002, p. 146).

Policarpo não nos deixou um legado literário muito extenso, mas seu exemplo de fé e ortodoxia continua a fortalecer cristãos, incentivando-os a andar com o Senhor até os dias de hoje, lembrando sempre que “se sofrermos por causa do seu nome, o glorificaremos” (In QUINTA, 2002, p. 144).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAIRNS, E. E. O Cristianismo Através dos Séculos: uma história da igreja cristã. São Paulo: Vida Nova, 2ª Edição, 2008.

FERREIRA, F. Gigantes da Fé. São Paulo: Editora Vida, 2006.

GRANCONATO, M. Eles Falaram Sobre O Inferno: a doutrina da perdição eterna nos primeiros escritos cristãos. São Paulo: Arte Editorial, 2010.

QUINTA, M. (Org.). Padres Apostólicos. Coleção Patrística. São Paulo: Paulus, 3ª Edição, 2002.

GONZALES, J. Uma História Ilustrada do Cristianismo: a era dos mártires. São Paulo: Vida Nova, 2009.

OLSON, R. História Da Teologia Cristã: 2.000 anos de tradição e reformas. São Paulo: Vida, 2009.



[1] “Inácio escreveu às igrejas a maioria das suas cartas” (OLSON, 2009, p. 47), todavia, uma foi também dirigida ao próprio Policarpo, quando aquele era ainda jovem.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Visões do Céu, um Teste de Caráter

Por John Owen

Podemos examinar desta forma tanto as nossas próprias noções do estado de glória como nossas preparações para ele, e se estamos, em qualquer medida, “participando da herança dos santos na luz”. Vários são os pensamentos dos homens a respeito do estado futuro, - as coisas que não são vistas, as quais são eternas. Alguns não vão além de esperanças de escapar do inferno, ou das misérias sem fim, quando morrerem. Mesmo os pagãos tinham seus campos Elíseos, e Maomé o seu paraíso sensual. Outros têm apreensões de não sei que tipo de glória reluzente, que os agradará e satisfará, de uma maneira que eles não sabem como, quando não puderem mais estar aqui. Mas este estado é de uma natureza completamente diferente, e sua bem-aventurança é espiritual e intelectual. Tome um exemplo de uma das coisas antes descritas. A glória do Céu consiste na plena manifestação da sabedoria, bondade, graça e santidade divina, - de todas as propriedades da natureza de Deus em Cristo. Na clara percepção e constante contemplação disto, consiste grande parte da eterna bem-aventurança. Quais, então, são os nossos presentes pensamentos acerca destas coisas? Que alegria, que satisfação temos em vista delas, as quais temos pela fé através da revelação divina? Qual o nosso desejo de vir a compreendê-las perfeitamente? O quanto gostamos deste Céu? O que encontramos em nós mesmos que será eternamente satisfeito com isto? De acordo com os nossos desejos que estão por trás disto, assim, e de nenhum outro modo, são os nossos desejos do verdadeiro Céu, - De modo algum Deus nos levará ao céu, quer queiramos ou não, se, pela ignorância e escuridão das nossas mentes, - se, pelo mundanismo e sensualidade de nossas afeições, - se, pela plenitude do mundo e suas ocasiões, - se, por amor a vida e nossos prazeres presentes, somos estranhos a estas coisas, não estamos familiarizados com elas, não temos muito tempo diante delas, - não estamos no caminho rumo à sua apreciação. A presente satisfação que recebemos nelas pela fé, é a melhor evidência que temos de um interesse irrevogável nelas. Quanta tolice é perder os primeiros frutos dessas coisas em nossas próprias almas, - aquelas entradas na bem-aventurança, as quais a contemplação delas pela fé abriria para nós, - e arriscar nossa alegria eterna nelas, por uma busca ansiosa de um interesse por coisas que vão perecendo aqui embaixo! Isto, isto sim é o que arruína as almas da maioria, e mantêm a fé de muitos em uma maré tão baixa que é difícil descobrir qualquer obra dela.
________________


Este texto foi publicado com a autorização de Len Hardison, Diretor de Desenvolvimento do Third Millennium Ministries. Agradecemos a forma carinhosa com que acolheu nossa petição. Deus abençoe este ministério!


Tradução de Nelson Ávila; publicado originalmente com o título “Views of Heaven a Test of Character”, na RPM Magazine, no site da Third Millennium Ministries:

http://old.thirdmill.org/magazine/current.asp/category/current/site/iiim

Este artigo é fornecido como um ministério de Third Millennium Ministries (IIIM). Se você possui alguma pergunta sobre este artigo, por favor envie um email ao nosso Editor Teológico. Se você quiser discutir este artigo em nossa comunidade online, por favor visite nosso RPM Forum.

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terça-feira, 21 de junho de 2011

ASSIM FIZERAM OS REFORMADORES

Um olhar sobre o método hermenêutico utilizado pelos Reformadores

MESQUITA NETO, Nelson Ávila

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho se propõe a apresentar, sem a pretensão de ser exaustivo, algumas das principais características do método hermenêutico (gramático-histórico) utilizado pelos Reformadores. O intérprete moderno fará bem em observá-los.

Iniciaremos com uma breve nota histórica e biográfica que tem por objetivo delimitar o uso de alguns termos aqui empregados, como “Reforma” e “método gramático-histórico”, bem como descrever sucintamente a vida dos dois homens sobre os quais se fundamenta este trabalho, a saber, Lutero e Calvino. Dentre todos os Reformadores, estes foram escolhidos aqui pela incomparável influência que exerceram, bem como pelo grandioso legado que nos deixaram. Diferentemente de outros Reformadores, muitas das obras de Lutero e Calvino podem ser facilmente acessadas em nossos dias e isto contribui também para a posição destes no presente estudo.

Ao longo do trabalho, tocaremos ainda na questão do caráter divino/humano das Escrituras e as dificuldades que este caráter impõe aos intérpretes que dela se aproximam. Logo após, será apresentada a forma como os Reformadores buscaram ultrapassar tais dificuldades, mostrando algumas das características de sua abordagem, as quais serão esboçadas mais de perto nas seções intituladas “O Livro Humano” e “O Livro Divino”. É nosso intuito que este breve panorama possa auxiliar de algum modo aqueles que objetivam a fidelidade no trato com a Palavra de Deus. Este era o alvo dos Reformadores e podemos dizer que alcançaram êxito na maior parte de seus labores.

2 BREVE NOTA HISTÓRICA E BIOGRÁFICA

De acordo com McGrath, “O termo ‘Reforma’ é usado por historiadores e teólogos para se referir ao movimento da Europa ocidental que teve como expoentes Martinho Lutero, Huldrych Zwingli (Zwinglio) e João Calvino”. Este movimento “[...] promoveu a reforma moral, teológica e institucional da igreja cristã nessa região” e “[...] procurou conduzir a igreja ocidental a fundamentos mais bíblicos para seu sistema de crenças, moralidade e estruturas” (2007, p. 175). Todavia, apesar de isto ser absolutamente verdade, o termo “Reforma” é freqüentemente empregado em vários outros sentidos. “Sua definição pode ser constituída de quatro elementos [...]: luteranismo; a igreja reformada, chamada com freqüência de ‘calvinismo’; a ‘Reforma radical’, conhecida até hoje como ‘anabatismo’; e a ‘contra-Reforma’ ou ‘Reforma católica’” (MCGRATH, 2007, p. 177).

No presente trabalho nos referiremos a “Reforma” nos termos dos dois primeiros elementos, ou seja, o luteranismo e o calvinismo, o que no conceito de McGrath (2007, pp. 177, 178) seria melhor definido como “Reforma magisterial”, em virtude de abarcar a ambos, contudo, nos limitaremos a empregar simplesmente a palavra “Reforma”, não querendo gerar qualquer tipo de má compreensão que possa advir ao incluir-se a palavra magistério.

Na era da Reforma, “[...] considerada, de modo geral, uma das mais criativas da história da teologia cristã” (MCGRATH, 2007, p.182), dos três teólogos mencionados anteriormente, destacam-se especialmente Calvino e Lutero. McGrath (2007, p. 182) escreve que “apesar de Zwinglio ser uma figura central por si mesmo, foi obscurecido pelo talento criativo e o impacto teológico de Lutero e Calvino” e, como citado de antemão, dialogaremos especificamente com o pensamento dos últimos.

No que diz respeito à história da interpretação bíblica, Lopes (2007, p. 167) nos conta que “os princípios interpretativos dos Reformadores”, os quais apresentaremos mais adiante, “[...] serviram de base para o surgimento da interpretação gramático-histórica que veio a prevalecer na Igreja após a Reforma”. Por “interpretação gramático-histórica”, devemos compreender que “a expressão grammatico se aproximava daquilo que entendemos pelo termo literal, [...] como sendo o significado simples, claro, direto ou habitual” (KAISER E SILVA, 2009, p. 33). Não devemos entender a expressão como se referindo apenas à “gramática” que era usada. “Igualmente, o contexto ‘histórico’ em que o texto foi redigido era também muito significativo para essa perspectiva, visto que desejava se aproximar o quanto fosse possível dos tempos e contextos em que o autor original estava falando” (KAISER E SILVA, 2009, p. 33). Por alguns mal-entendidos levantados a partir deste termo, Walter Kaiser (KAISER E SILVA, 2009, p. 33) sugeriu a substituição pela expressão “sintático-teológico”, todavia, manteremos aqui a expressão “gramático-histórico”.

Passemos agora um breve olhar sobre a vida dos dois grandes homens em torno dos quais gira nosso trabalho.

2.1 O Reformador Alemão

Justo L. Gonzalez (2009, p. 43) declara que “poucos personagens na história do cristianismo têm sido discutidos tanto ou tão calorosamente como Martinho Lutero”. Há quem o considere como “[...] o ‘bicho papão’ que destruiu a unidade da igreja, a besta selvagem que pisou na vinha do Senhor, um monge renegado que se dedicou a destruir as bases da vida monástica” (GONZALEZ, 2009, p. 43).

Há o outro lado, porém, que o têm como “[...] o grande herói que fez voltar, uma vez mais, a pregação do evangelho puro, o campeão da fé bíblica, o reformador de uma igreja corrompida” (GONZALEZ, 2009, p. 43).

O certo é que, nos últimos tempos, “[...] tanto católicos como protestantes se têm achado na obrigação de corrigir certas opiniões formadas, não pela investigação histórica, mas pelo fragor da polêmica” (GONZALEZ, 2009, p. 43). Gonzáles (2009, p. 43) afirma que “hoje são poucos os que duvidam da sinceridade de Lutero e há muitos católicos que afirmam que o protesto do monge agostinho foi mais do que justificável e que em muitos pontos tinha razão”.

Paul Althaus (apud GEORGE, 2006, p. 53) chegou mesmo a referir-se a Lutero como um “oceano”, e verdadeiramente há muito conteúdo sobre o qual navegar quando o assunto é o Reformador alemão. Contudo, visto não ser biográfico o objetivo do presente trabalho, resumiremos sua história nas palavras de Timothy George (2006, p. 53):

Martinho Lutero nasceu em 10 de novembro de 1483, em Eisleben, filho de um minerador de prata de classe média. Destinado para o estudo de Direito, voltou-se para o mosteiro, no qual, após muitas lutas, desenvolveu uma nova compreensão de Deus, da fé e da igreja. Isso o envolveu num conflito com o papado, seguindo de sua excomunhão e da fundação da Igreja Luterana, a qual presidiu até morrer em 1546.

Não poderíamos concluir esta nota sem antes louvarmos os esforços de Lutero em traduzir a Bíblia para o alemão, afim de que o povo comum de sua terra pudesse ter acesso ao texto sagrado. Nas palavras de Gonzalez (2009, p. 77), “A Bíblia alemã foi uma das obras mais notáveis de Lutero. Mesmo que outros houvessem empreendido o mesmo trabalho, nenhuma tradução chegou a alcançar a estabilidade da de Lutero”.

2.2 O Reformador de Genebra

“Poucas pessoas na história do cristianismo têm sido tão surpreendentemente estimadas ou tão mesquinhamente desprezadas quanto João Calvino” (GEORGE, 2006, p.167). Todavia, apesar das críticas feitas ao Reformador genebrino, críticas estas, em sua grande maioria, frutos de um preconceito ignorante e não de uma reflexão histórico-teológica, o ministério deste homem foi fundamental na causa da Reforma do século XVI. Gonzalez (2009, p. 107) diz que, “sem dúvida, o mais importante sistematizador da teologia protestante no século XVI foi João Calvino”. Comparando Lutero a Calvino ele acrescenta: “Enquanto Lutero foi o espírito fogoso e propulsor do novo movimento, Calvino foi o pensador cuidadoso que forjou, das diversas doutrinas protestantes, um todo coerente” (GONZALES, 2009, p. 107).

Calvino nasceu em 1509 na cidade de Noyon (França), a nordeste de Paris. “Quando nasceu [...] Lutero já estava dando conferências na Universidade de Erfurt e Zuínglio estava-se ocupando de suas tarefas pastorais em Glarus” (GEORGE, 2006, p. 165). É inegável a influência dos escritos de Lutero sobre o pensamento de Calvino, ele próprio chegou a chamar o Reformador alemão de “pai muito respeitável” (GEORGE, 2006, p. 166). Não obstante, é igualmente inegável o fato de Calvino não poder ser definido de modo simplista como um mero discípulo de Lutero, ou uma extensão apenas daquele. É fato que “Lutero elogiou alguns dos primeiros escritos de Calvino que lhe haviam sido enviados”, e Gonzalez (2009, p. 118) afirma que, além disso, aquele “[...] havia dado boa acolhida às Institutas de Calvino”, a magnum opus do Reformador de Genebra.

Sobre a história de Calvino antes de sua conversão, McGrath (2007, p. 183) nos conta que ele estudou “[...] na Universidade de Paris, um meio acadêmico dominado pelo Escolasticismo, e se mudou depois para a universidade humanista de Orléans, onde estudou direito civil”. McGrath diz ainda que “apesar de se mostrar inicialmente interessado em uma carreira acadêmica, com vinte e poucos anos teve uma experiência de conversão que o levou a se associar cada vez mais aos movimentos de reforma em Paris que, por fim, provocaram o exílio de Calvino na Basiléia” (2007, p. 183).

Após abandonar sua terra natal, Calvino, por influência do Reformador francês Guilherme Farel, o qual veio a se tornar seu grande amigo, permaneceu em Genebra, colaborando para a causa da Reforma naquela cidade. Após uma série de problemas em decorrência da resistência da cidade em aceitar a “[...] base sólida de doutrina e disciplina” (MCGRATH, 2007, p. 184) que Calvino e Farel visavam estabelecer, Calvino foi expulso e viajou para Estrasburgo, onde amadureceu bastante na companhia do Reformador Martin Bucer.

Alguns anos depois, Calvino foi chamado de volta à Genebra, onde permaneceu até sua morte em 1564. Há muito mais a ser dito sobre o grande Reformador genebrino. Poderíamos tratar de sua vasta obra literária; de seus esforços nas áreas da educação (do qual a fundação da Universidade de Genebra é um exemplo), da política, da economia etc.; contudo, por uma questão de espaço e objetivo, gostaríamos de findar esta breve nota biográfica, antes de passarmos a abordar o caráter das Escrituras e as dificuldades que se apresentam aos seus intérpretes, citando as palavras finais de Calvino aos ministros de Genebra, revelando com isto um pouco da imensa humildade daquele grande homem de Deus: “Meus pecados sempre me desgostaram. ... Rogo-vos, que me perdoeis o mal, e se porventura tenha havido algum bem, ... fazei dêle (sic) um exemplo” (CALVINO apud VAN HALSEMA, 1968, p. 203).

3 O CARÁTER DAS ESCRITURAS E AS DIFICULDADES DO INTÉRPRETE

A Bíblia é um Livro Divino, fruto de uma auto-revelação comunicada por Deus através de vários séculos e de diferentes modos, ou como expressa o autor da epístola aos Hebreus: “muitas vezes, e de muitas maneiras” (Heb. 1:1). Ela se apresenta como tendo sido inspirada (qeópneustoV [theopneustos]) pelo próprio Deus (2 Tim. 3:16). Ferreira e Myatt (2007, p. 112) esclarecem que aqui, “Embora a palavra ‘inspirada’ seja a tradução mais comum, a idéia mais correta é que a palavra foi soprada (ou respirada) por Deus”. Tudo isto deve nos fazer conscientes do caráter sobrenatural da Palavra de Deus e de que não a devemos tratar como um livro qualquer. O intérprete, ao aproximar-se da Bíblia imediatamente se deparará com aquilo que Lopes (2007, p. 26) chama de “Distanciamento Natural”, em conseqüência da posição de Deus como o Criador e sustentador de todas as coisas em contraposição ao homem, uma criatura limitada e finita. Haverá ainda o “Distanciamento Espiritual” e “Moral” (LOPES, 2007, p. 27), visto ser Deus absolutamente Espiritual, Perfeito e Santo, enquanto nós possuímos um caráter corrompido e pecaminoso, tendendo sempre ao erro.

Todavia, a Bíblia também é um livro humano. Em seu processo revelacional, aprouve ao Senhor escolher homens por meio dos quais faria conhecida Sua vontade, e como a Confissão de Fé de Westiminster (cap. 1, seção 1) bem expressa: “[...] para melhor preservação e propagação da verdade, para o mais seguro estabelecimento e conforto da Igreja contra a corrupção da carne e malícia de Satanás e do mundo, foi igualmente servido fazê-la escrever toda”. Deus levou em consideração as peculiaridades de cada um destes homens, bem como o contexto no qual encontravam-se inseridos, por isso declaramos possuir a Bíblia um caráter igualmente humano.

Visto que a Bíblia foi escrita a mais de 2000 anos, e ser inconcebível a idéia de que em dois milênios de história a cosmovisão das pessoas tenha permanecido exata e inalteravelmente a mesma, isto nos coloca numa linha do tempo extremamente distanciada do período em que as realidades bíblicas aconteceram.

Augustus N. Lopes (2007, p. 24) assevera que “A distância temporal, num mundo em constantes mudanças, faz com que a maneira de encarar o mundo, os aspectos culturais e lingüísticos dos escritores da Bíblia se percam no passado distante”; e acrescenta que “Na época do Novo Testamento o distanciamento já era uma realidade”. Isto, às vezes, pode nos trazer grande desânimo, já que o entendimento de muitas peculiaridades do Texto Sagrado torna-se um empreendimento a exigir do intérprete esforço descomunal, tais como longos períodos de pesquisa e profunda meditação, sem, contudo, qualquer garantia de que se chegará à compreensão plena das peculiaridades envolvidas. Na verdade, há quem diga ser absolutamente inútil tal esforço, dado sua “impossibilidade”.

De fato, é absolutamente impossível regressar ao período bíblico e apurar em primeira mão os fatos decorrentes daquela época, contudo, é do mesmo modo impossível retornar a qualquer período de qualquer época da história e, ainda assim, tomamos outros relatos como válidos e inquestionáveis para a reconstrução de todos os períodos históricos do qual temos conhecimento. Por conseguinte, mesmo reconhecendo a dificuldade que se nos apresenta, não concordamos com aqueles que contraditoriamente postulam essa completa impossibilidade.

Outra grande dificuldade que se impõe ao intérprete é o chamado “distanciamento lingüístico”. Lopes (2007, p. 25) destaca que “as línguas em que a Bíblia foi escrita já não existem”. Mesmo nos países onde ela foi escrita, o hebraico, o grego e o aramaico já não são mais falados. É importante frisar que “como cada língua tem seu jeito próprio de comunicar conceitos (apesar de uma estrutura comum a todas), os leitores da Bíblia devem levar em conta estas peculiaridades” (LOPES, 2007, p. 25).

O distanciamento autoral também é um problema a ser enfrentado, pois, os autores bíblicos não estão mais vivos, de modo que não os podemos consultar diante de uma dificuldade hermenêutica. Aqueles autores escreveram com uma intenção a ser expressa e, em muitos casos, para responder a questões específicas de suas próprias sociedades, sendo assim, o hermeneuta que se aproxima de seus escritos deve estar consciente deste fato e apto a enfrentá-lo.

Como temos apresentado, nem sempre é tarefa fácil estabelecer o sentido de algumas passagens da Escritura, todavia, aqui podemos observar como os Reformadores lidaram com as mesmas dificuldades que nós em sua própria época, e como fizeram para driblar algumas destas dificuldades.

4 O LIVRO HUMANO: LABUTARE

4.1 Os Reformadores e a necessidade do estudo

A consciência dos Reformadores sobre o aspecto humano das Escrituras, embora permanecessem aferrados na certeza de que em sua maior parte esta era absolutamente clara, em virtude de sua origem divina, os impulsionaram a considerar a necessidade de estudá-las e pesquisá-las com extremo afinco. Calvino expressa o processo hermenêutico em duas palavras: “orare et labutare” (ore e trabalhe). Eles compreenderam que “pelo estudo cuidadoso das línguas originais, pelo conhecimento da cultura e da época em que foram escritas, poder-se-ia chegar ao sentido provável das passagens obscuras” (LOPES, 2007, pp. 162, 163), ou seja, é preciso “labutare”. Por este motivo, buscaram utilizar-se de todos os meios possíveis para se chegar ao real sentido do texto bíblico, fazendo “[...] uso abundante da erudição antiga, citando comentaristas medievais, as obras dos pais apostólicos e obras de contemporâneos” (LOPES, 2007, p. 165).

“Melancton, amigo de Lutero e colega dele em Wittenberg, disse que Lutero conhecia a teologia dogmática tão bem no início de seu ministério que era capaz de citar de memória páginas inteiras de Gabriel Biel (texto padrão dogmático, publicado em 1488)” (PIPER, 2005, p. 98). Lopes (In FERREIRA, 2010, p.230) informa que “seu [de Lutero] profundo conhecimento da literatura da época transparece claramente” em seu comentário de Gálatas (1535), onde não apenas cita, mas faz uma avaliação crítica de:

[...] escritores gregos como Virgílio, Esopo, Aristides, Aristóteles, Cícero, Demóstenes, Ovídio, Plínio e Platão, para mencionar uns poucos. [...] demonstra familiaridade também com as obras de Eusébio, Suetônio, Quintiniano, Justino e Porfídio. Conhece também os escritos de alguns dos Pais da Igreja como Ambrósio, Orígines, Cipriano, Irineu e Jerônimo. [...] menciona também as obras de comentaristas medievais como Gregório de Nissa, Pedro Lombardo, Occam, Scotus, Tomás de Aquino e Bernardo de Claraval. E conhece também até mesmo as obras de Erasmo, a quem critica continuamente.

Semelhantemente nos é informado que Calvino “Dedicou-se ao estudo do latim, do grego, da teologia e dos autores clássicos, além de fazer cursos na área de Direito” (LOPES, 2009, p. 14). Nas palavras do renomado historiador Philip Schaff (apud KAISER E SILVA, 2009, p. 243):

Calvino foi um gênio exegético de primeira ordem. Seus comentários são insuperáveis em termos de originalidade, profundidade, perspicácia, solidez e valor permanente (...) Reuss, o editor chefe das obras [de Calvino], ele próprio um eminente estudioso da Bíblia, afirma que Calvino está “sem sombra de dúvida entre os grandes exegetas do século 16” (...) Diestel, o melhor historiador da exegese do Antigo Testamento, o chama de “criador da autêntica exegese”.

Para os Reformadores, a “graça comum” que fora derramada mesmo sobre descrentes, não poderia ser desprezada, antes, porém, convertida em glória a Deus. Calvino escreveu:

Mas se é a vontade do Senhor que sejamos auxiliados pela física, dialética, matemática e outras disciplinas tais, através do trabalho e do ministério dos descrentes, façamos uso dessa assistência. Pois se negligenciarmos a dádiva das artes, oferecida gratuitamente por Deus, devemos sofrer a justa punição por nossa indolência (CALVINO apud KAISER E SILVA, 2009, p. 245).

4.2 Os Reformadores e a superioridade do texto bíblico

Tais demonstrações de erudição repousavam sobre uma humilde reverência em face do Texto Sagrado. Eles não tinham o objetivo de impor suas próprias conjecturas ao texto, nem de fundamentar suas interpretações sobre a “autoridade” de outros intérpretes e expositores (como o fazia a Igreja Católica Romana, adaptando a mensagem bíblica ao relato dos pais apostólicos, dos dogmas e do papado), mas empenhavam-se por derivar suas conclusões do próprio escrito divino. Calvino, por exemplo, “[...] tinha aversão a quem pregava suas próprias idéias no púlpito” e chegou mesmo a dizer que “quando adentramos o púlpito, não podemos levar conosco nossos próprios sonhos e fantasias” (FERREIRA, 2009, p. 7). Do mesmo modo, Lutero declarou:

O que eles [os sofistas] deveriam fazer é vir ao texto vazios, derivar suas idéias da Escritura Sagrada, e então prestar atenção cuidadosa às palavras, comparar o que precede com o que vem em seguida, e se esforçar para agarrar o sentido autêntico de uma passagem em particular, em vez de ler as suas próprias noções nas palavras e passagens da Escritura, que eles geralmente arrancam de seu contexto” (apud LOPES In FERREIRA, 2010, p. 223).

Piper (2005, p. 98) nos escreve que “Lutero elevou o texto bíblico muito acima dos ensinamentos dos comentadores ou dos pais da igreja” e acrescenta, “Não foi falta de disposição para estudar os pais e os filósofos que limitaram seu foco; foi uma paixão dominadora pela superioridade do próprio texto bíblico”. Em 1538 Lutero disse que “aquele que for bem familiarizado com o texto da Escritura [...] é um teólogo distinto. Pois uma passagem ou texto bíblico vale mais que comentários de quatro autores” (apud PIPER, 2005, p. 98). Ele, assim como os demais Reformadores, não tinha, com isso, “[...] a intenção de negar a História e seu desenvolvimento” (LOPES, 2007, p. 166), mas, ao postularem o princípio do “sola Scriptura” (somente a Escritura) e o ideal do ad fontes (o retorno às fontes documentais), seu intento era introduzir, no próprio seio da História, “[...] um princípio crítico que permitisse julgá-la, bem como as doutrinas dos Pais” (LOPES, 2007, p. 166).

Lopes (2007, p. 166) nos conta que “para os Reformadores e seus sucessores, os Pais e os escolásticos tinham autoridade na medida em que concordavam com a Escritura”. E aqui cabe ressaltar o método de comparar Escritura com Escritura (derivado dos princípios citados supra) adotado por eles, o qual postula como “[...] a única regra infalível de interpretação das Escrituras [...] a própria Escritura” (LOPES, 2007, p. 163). Lutero expressa este conceito claramente ao afirmar: “Se são obscuras num lugar, são claras em outros” (apud LOPES, 2007, p. 163). Isto contribuiu para determinar o real sentido do texto bíblico a partir de outras partes do mesmo, e não da tradição, de decisões eclesiásticas, de argumentos filosóficos, intuições espirituais ou qualquer outro parâmetro que se possa propor.

É por esta razão que não nos deve causar espanto o fato de encontrarmos em seus escritos comentários aos Pais como estes dois que se seguem:

Os textos dos pais santos devem ser lidos somente por um tempo, para que sejamos por eles guiados às Escrituras Sagradas. Todavia, nós os lemos somente para nos perdermos neles e nunca chegarmos às Escrituras. Somos como homens que estudam os sinais e nunca andam pelo caminho. Os queridos pais desejaram que, por seus escritos, fôssemos guiados às Escrituras apesar de somente a Escritura ser nosso vinhedo, no qual todos nós devemos trabalhar e labutar (LUTERO apud PIPER, 2005, pp. 98, 99).

Devemos ler os Pais cautelosamente, e pesá-los na balança dourada, pois freqüentemente tropeçam e se desviam, e misturam com seus livros muitas coisas dos monges. Agostinho teve mais trabalho para se livrar dos escritos dos Pais do que em combater os heréticos... Quanto mais leio os escritos dos Pais, mais me ofendo, pois apesar da sua reputação e autoridade, diminuíram o valor dos livros e escritos dos santos apóstolos de Cristo (LUTERO apud LOPES, 2007, p. 166).

4.3 Os Reformadores e o método alegórico

Esta atitude também consistia numa reação ao método alegórico de interpretação, característico da escola de Alexandria e popularizado nos escritos de Orígenes (durante o período Patrístico), o qual ganhou força dentro da igreja, chegando inclusive a ser dominante durante toda a Idade Média.

Não é que os Reformadores desconsiderassem a existência de alegorias na Bíblia, todavia, eles as encaravam como uma espécie de quadro ou ilustração firmado solidamente sobre a doutrina, o qual tinha por pano de fundo um sentido literal, e este sentido era o que deveria ser buscado. Desta forma, à semelhança da escola de Antioquia, eles passaram a refutar qualquer tipo de alegorização que não fosse estritamente validada pelo próprio contexto da passagem que estivesse sendo alegorizada, bem como a idéia de que cada passagem da Escritura continha quatro sentidos. O Reformador alemão escreveu: “A Palavra de Deus deve ser interpretada em seu sentido mais claro, conforme as próprias palavras transmitem” (LUTERO, 2009, p.70).

Lutero protesta asperamente a este respeito:

A Alegoria de um sofista é sempre retorcida; ela rasteja e se curva como uma cobra, que nunca se endireita, quer caminhe, quer se arraste, que (sic) fique parada; somente quando morre é que uma cobra fica direita... Quando eu era um monge, era muito versado em significados espirituais e alegorias. Mais tarde, porém, quando cheguei ao conhecimento de Cristo através da carta aos Romanos, vi que todas as alegorias são vãs, exceto aquelas que Cristo usou... Jerônimo e Orígines, Deus os perdoe, são os responsáveis pela alegoria ser tão estimada [na Igreja]. Tudo o que Orígines escreveu não vale uma única palavra de Cristo. Quanto a mim, já abandonei estas bobagens, e minha melhor arte é pregar a Escritura em seu sentido único (apud LOPES, 2007, p. 161).

Também Calvino, ao comentar o texto de Efésios 3:18, demonstra desprezo pelas alegorias feitas por Agostinho e Ambrósio:

O que vem a seguir é por si só suficientemente claro, mas que até agora tem sido obscurecido por uma variada gama de interpretações. Agostinho causa muito deleite com sua sutileza, mas que nada tem a ver com o tema. Pois aqui ele busca não sei que mistério na figura da cruz – ele faz a largura ser o amor, a altura ser a esperança, o cumprimento ser a paciência e a profundidade, a humildade. Toda essa sutileza nos agrada, mas o que tem isso a ver com a intenção de Paulo? Por certo que não mais que a opinião de Ambrósio, que denota a forma de uma esfera. Pondo de lado o ponto de vista de outros, afirmarei o que será universalmente reconhecido ser o significado simples e verdadeiro [...] Por essas dimensões, Paulo nada mais tem em mente senão o amor de Cristo do qual fala mais adiante [...] É como se dissesse: “Em toda e qualquer direção em que os homens olhem, nada encontrarão na doutrina da salvação que não esteja relacionado com o amor de Cristo” [...] O significado ficará ainda mais claro se o parafrasearmos assim: “Para que sejais capazes de compreender o amor que é o cumprimento, a largura, a profundidade e a altura, isto é, a plena perfeição de nossa sabedoria.” A metáfora é extraída da matemática, que toma partes como expressão do todo (CALVINO, 2007, pp. 81, 82)

4.4 Os Reformadores e a intenção autoral

É interessante notar que, ao mesmo tempo em que critica a abordagem alegórica, Calvino, no texto anterior, aponta para outra característica marcante da hermenêutica utilizada na Reforma, a saber, a intenção do autor. Ele se utiliza de expressões como “a intenção de Paulo”, ou ainda, “Paulo [...] tem em mente” etc. como meio para se descobrir o verdadeiro significado do texto bíblico. Também Lutero, em seu segundo comentário à epístola aos Gálatas (1535), “[...] concentra-se insistentemente em determinar a intenção de Paulo em cada passagem” (LOPES In FERREIRA, 2010, p. 223). Ao iniciar sua análise de Gálatas 2, critica Jerônimo afirmando que este “...nem toca no ponto verdadeiro da passagem, pois não leva em conta a intenção ou propósito de Paulo” (LUTERO apud LOPES In FERREIRA, 2010, p. 223). Posteriormente, “[...] comentando Gálatas 1.3, Lutero volta a criticar Jerônimo, afirmando que o mesmo deixou passar inteiramente desapercebido o ponto principal do versículo, por ter falhado em captar a intenção de Paulo ali” (LOPES In FERREIRA, 2010, p. 223). Determinante para esta abordagem e estabelecimento da real intenção pretendida pelo autor inspirado é o “contexto”, tanto imediato quanto geral, da passagem que estiver sendo analisada, assim como o próprio texto em seu formato original, o que nos leva ao tópico seguinte.

4.5 Os Reformadores e as línguas originais

Moisés Silva (KAISER E SILVA, 2009, p. 16) escreveu que “a linguagem humana, por sua própria natureza, é grandemente equívoca, isto é, capaz de ser compreendida em mais de uma maneira e se não fosse assim, nunca duvidaríamos do que as pessoas querem dizer quando falam”. Este é justamente um dos maiores problemas com o qual o hermeneuta, em todas as épocas, tem sido obrigado a lidar, em virtude do amplo campo semântico que as palavras assumem, principalmente no caso das Escrituras, visto, como já citado, terem sido escritas em línguas antigas, que sofreram muitas alterações, algumas das quais não se encontrando mais em uso.

Destarte, Piper (2005, p. 101) nos conta que Lutero estava intensamente convencido de que “poder ler grego e hebraico era um dos maiores privilégios e responsabilidades do pregador reformado”. O Reformador de Wittenberg declarou:

Sem as línguas originais não poderíamos ter recebido o Evangelho. As línguas originais são a bainha que contêm a espada do Espírito; elas são a [caixa] que contêm as inestimáveis jóias do pensamento da Antigüidade; elas são a vasilha que guarda o vinho; e como o Evangelho diz, elas são as cestas nas quais os pães e os peixes são guardados para alimentar a multidão (LUTERO apud PIPER, 2005, p. 102).

O temor de Lutero era o de que, ao se desprezar as línguas originais, o povo se tornasse indefeso diante de toda sorte de heresias, como exemplificado em suas palavras ao referir-se aos Pais apostólicos e aos Valdenses:

Em tempos passados, os pais freqüentemente se enganavam, pois eram ignorantes das línguas. Em nossos dias, há alguns que, como os Valdenses, não acham que as línguas tenham qualquer utilidade; mas, embora sua doutrina seja boa, eles têm freqüentemente errado no verdadeiro sentido do texto sagrado; estão sem armas contra o engano, e tenho grande temor de que sua fé não permaneça pura (LUTERO apud PIPER, 2005, p.102).

Tal declaração concorda com o alerta feito por Moisés Silva (KAISER E SILVA, 2009, pp. 51, 52) onde, embora instando para que não se exagere a importância das línguas originais, escreve que “as versões em nossa língua por si mesmas não podem ser a base exclusiva para a formulação da doutrina. Devemos ser cuidadosos em não adotar novas idéias se estas ainda não foram analisadas de acordo com o texto original”.

Lutero atribui a própria vitória da causa Reformada “[...] ao poder penetrante das línguas originais” (PIPER, 2005, p. 103), e testemunha como elas influenciaram sua causa:

Se os originais não tivessem me dado certeza sobre o verdadeiro significado da Palavra, eu teria permanecido um monge acorrentado, ocupado em pregar sossegadamente os erros católicos na obscuridade do mosteiro; o papa, os sofistas e seu império anticristão teriam permanecido inabaláveis (LUTERO apud PIPER, 2005, p. 103).

Para Lutero:

É um pecado e uma vergonha não conhecer nosso próprio Livro ou não entender as palavras de nosso Deus; é um pecado e uma perda maior ainda que não estudemos as línguas originais, especialmente nestes dias, em que Deus está nos oferecendo e dando homens e livros e toda facilidade e encorajamento para esse estudo. Ele deseja que sua Bíblia seja um livro aberto. Ah, como nossos queridos pais teriam ficado alegres se tivessem tido a oportunidade de estudar as línguas e vir, portanto, preparados às Escrituras Sagradas! Que esforço e labuta eles tiveram para juntar apenas algumas migalhas, enquanto nós, com metade do trabalho – sim, com quase nenhum trabalho – podemos adquirir o pão inteiro! Ah como seus esforços envergonham nossa indolência! (LUTERO apud PIPER, 2005, pp. 104, 105).

Esta ênfase no estudo das línguas originais também se fez presente na hermenêutica de Calvino; são constantes as citações feitas do original em seus comentários. Podemos perceber um pouco do método utilizado pelo Reformador Genebrino ao analisarmos este comentário do texto de Mateus 2.23 (“E foi habitar numa cidade chamada Nazaré, para que se cumprisse o que fora dito por intermédio dos profetas: Ele será chamado Nazareno”):

Mateus não deriva “nazareno” de “Nazaré”, como se existisse uma conexão etimológica real e certa entre as duas palavras. O que temos aqui é uma mera alusão. Nazir [em hebraico] significa santo e devotado a Deus, e por sua vez deriva-se de nazar, que significa separado. É certo que os judeus chamavam uma certa flor (aliás, a insígnia da coroa real) de nazar. Mas não há qualquer dúvida de que aqui Mateus usou a palavra no sentido de santo. Em nenhum lugar lemos que os nazarenos floresceram; mas lemos em Números 6.4 que eles eram separados para Deus conforme prescrito na Lei. Portanto, devemos entender a declaração de Mateus da seguinte forma: apesar de que José foi habitar em um canto da Galiléia [isto é, em Nazaré] por medo, Deus tinha um propósito maior; pois Nazaré havia sido determinada para ser o lar de Cristo, de forma que ele pudesse portar o nome de nazareno, que era apropriadamente seu (CALVINO apud LOPES, 2007, p. 165).

Neste trecho Calvino busca a intenção do evangelista a partir do conhecimento da língua empregada por ele, dos usos gramaticais, das circunstâncias em que escrevera a obra, dentre outras coisas (LOPES, 2007, p. 165), sendo a língua original em grande medida determinante, e isto fica claro ao referir-se às palavras nazir/nazar, dentro de seu contexto no Antigo Testamento, para alcançar o significado de Nazareno no pensamento judaico de Mateus.

Outro exemplo, dentre vários que poderiam ser citados, é o que se encontra no comentário de Colossenses 1:5:

Erasmo o traduz a verdadeira palavra do evangelho. Também estou ciente de que, segundo o idioma hebraico, Paulo faz uso freqüente do genitivo no lugar de um epíteto; mas as palavras de Paulo aqui são mais enfáticas. Pois ele chama o evangelho καψ έxοχήν (à guisa de eminência), a palavra da verdade, com vistas a depositar honra nela, para que mais pronta e firmemente à revelação que têm derivado daquela fonte. Assim, introduz-se o termo evangelho à guisa de aposição (CALVINO, 2010, pp. 495, 496).

O que temos apresentado até aqui é parte constituinte do método hermenêutico que ficou conhecido pelo nome de “gramático-histórico”. Este método poderá nos auxiliar de diversas maneiras ao lidarmos com a natureza das Escrituras, todavia, é preciso observar o modo como os Reformadores abordaram o caráter divino/espiritual da mesma, afim de que tenhamos uma visão mais ampla de sua metodologia.

5 O LIVRO DIVINO: ORARE

5.1 Os Reformadores e o distanciamento natural

Como já fizemos menção, a Bíblia é um livro divino e não deve ser lida como se lê um livro qualquer de religião. Ela é inspirada, autoritativa e inerrrante, devendo ser encarada tal qual se apresenta, e esta se apresenta não menos do que como a Palavra de Deus.

Em contraposição, o homem é um ser por natureza imensamente distanciado de Deus. “Ele é o Senhor, criador de todas as coisas, do céu e da terra. Somos suas criaturas, limitadas, finitas. Nossa condição de seres humanos impõe limites à nossa capacidade de entender e compreender as coisas de Deus” (LOPES, 2007, p. 26). Como, então, ultrapassar esta barreira (ou distanciamento) que se nos apresenta?

Lopes (2007, pp. 26, 27) diz que o próprio “[...] fato de sermos seres humanos tentando entender a mensagem enviada pelo Deus criador, em si só apresenta um distanciamento”. A resposta dos Reformadores diante deste fato encontra-se na iluminação do Espírito Santo.

Os Reformadores enfatizaram bastante a necessidade do papel iluminador do Espírito Santo na tarefa da interpretação das Escrituras. Calvino, que até chegou a receber o título de “o teólogo do Espírito Santo”, escreveu em sua obra célebre:

Elas [as Escrituras], sem dúvida, não são por si só suficientes para que se lhes dê o crédito devido, até que o Pai Celestial, manifestando sua divindade as redima de toda dúvida e então faça com que se lhes dê crédito. Assim pois, a Escritura nos satisfará e servirá de conhecimento para conseguir a salvação, somente quando sua certeza se funde à persuasão do Espírito Santo (CALVINO, 2006, pp. 43,44).

Calvino comentou também:

Portanto, iluminados pelo poder [do Espírito], acreditamos que as Escrituras são de Deus não pelo nosso próprio julgamento [observem isto!] nem pelo julgamento de qualquer outra pessoa; mas, acima de qualquer julgamento humano, afirmamos com absoluta certeza (como se estivéssemos contemplando a majestade do próprio Deus) que esta certeza nos chegou da própria boca de Deus, e não através do ministério de homens (apud PIPER, 2005, p. 133).

Para Calvino (2006, p. 33), “[...] o testemunho que o Espírito Santo dá é muito mais excelente que qualquer outra razão”, e isto não consiste em qualquer tentativa de depreciar o trabalho árduo exercido pelo hermeneuta, mas apenas numa confissão da total dependência do intérprete, frente ao Livro Santo, de algo (ou neste caso Alguém) que seja maior do que ele mesmo, e assim o conduza a verdade que de outro modo não seria capaz de alcançar por seus próprios esforços. As palavras de Calvino aqui parecem simplesmente fazer eco aquela verdade apresentada por Deus ao profeta Isaías: “Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos, os meus caminhos, diz o Senhor, porque, assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos, mais altos do que os vossos pensamentos” (Isa. 55:8-9). Ou aquilo que Paulo expressou tão bem em Romanos 11:33-34: “Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos! Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro?”.

5.2 Os Reformadores e os distanciamentos espiritual e moral

Alem da barreira natural, há também a espiritual e a moral. Em virtude do estado deplorável em que se encontra por conseqüência da Queda, o ponto de partida do intérprete deve ser “Transpor o abismo epistemológico” estabelecido por aquela (LOPES, 2007, p. 27). Aqui, mais uma vez os Reformadores enfatizaram a obra do Espírito Santo, o qual opera a regeneração e a conversão na vida do pecador eleito. Tal convicção levou os Reformadores a uma total dependência da liberdade da graça de Deus, e a travar imensa batalha contra o conceito de “livre-arbítrio”.

Em resposta ao livro de Erasmo, “The Freedom of the Will” (A Liberdade da Vontade), Lutero escreveu “The Bondage of the Will” (O Cativeiro da Vontade) e chegou a declarar que “o homem tem em seu poder uma liberdade da vontade para fazer ou não obras externas, reguladas pela lei e pelos castigos (...) Por outro lado, o homem, por si só, não tem a capacidade de purificar seu próprio coração e produzir dons divinos, com o verdadeiro arrependimento de pecados, um verdadeiro (ao contrário do artificial) temor de Deus, verdadeira fé, amor sincero, pureza (...)” (LUTERO apud PIPER, 2005, pp. 113, 114).

Lutero também escreveu, em contraposição a idéia de Erasmo que exaltava “[...] a vontade do homem como sendo livre para superar seus próprios pecados e sua escravidão” (PIPER, 2005, p. 114), que condenava, rejeitava e considerava erro:

[...] todas as doutrinas que exaltam nosso ‘livre arbítrio’, pois são diretamente opostas à mediação e à graça do nosso Senhor Jesus Cristo. Pois já que, aparte de Cristo, o pecado e a morte são nossos mestres e o Diabo é nosso deus e príncipe, não pode haver força ou poder, juízo ou sabedoria, pelo qual possamos nos adaptar e nos moldar para a retidão e a vida. Ao contrário, cegos e cativos, somos obrigados a ser súditos de Satanás e do pecado, fazendo e pensando o que lhe agrada e o que é antagônico a Deus e aos seus mandamentos (LUTERO apud PIPER, 2005, p. 115).

No centro dessa discussão, além da consciência deste distanciamento natural, espiritual e moral, também estava aquilo que já apresentamos outrora como a busca do sentido claro e literal do texto (que assim o é justamente por sua natureza divina). Por isso, Lutero crítica tanto o conceito quanto a metodologia de Erasmo:

Você [Erasmo] criou uma nova maneira de perder de vista o significado óbvio de um texto. Você insiste que os textos que se manifestam claramente contrários à idéia do “livre-arbítrio” devem ter alguma “explicação” que traga à tona o seu verdadeiro sentido. E nós devemos insistir que tal “explicação” só se torna necessária quando é absurdo manter o sentido literal de alguma passagem bíblica. Em todos os demais casos, devemos manter o sentido simples e natural das palavras, guiados pelas regras de gramática e de hábitos de linguagem que Deus criou entre os homens. Se agirmos de outro modo, nada mais restará sobre o que possamos ter qualquer certeza. Não basta afirmar que uma “explicação” deve ser necessária. Em cada caso, compete-nos indagar se existe a necessidade, ou se deve haver uma “explicação”. Se não puder ser provado que isso se faz necessário, nada se terá conseguido (LUTERO, 2009, p. 69).

Este texto de Lutero parece meio deslocado nesta porção do trabalho em que consideramos a natureza divina das Escrituras, todavia se faz necessário aqui para nos mostrar como nossa teologia pode interferir significativamente no modo como lemos e interpretamos as Escrituras e, por isso, mais uma vez reiteramos a ênfase dos Reformadores na iluminação do Espírito Santo. O remédio oferecido por eles para que ultrapassemos as barreiras (ou distanciamentos) que se levantam diante de nós em virtude do caráter divino das Escrituras, em contraposição a nossa humanidade e conseqüente corrupção que tende sempre ao engano, não é outro senão a “oração”. Devemos constantemente pedir o direcionamento de Deus para a compreensão da Sua Palavra, para que esta corrupção que habita em nós não nos impeça de ouvir Sua doce voz.

Encerramos esta seção com as palavras de Lutero (apud PIPER, 2005, p. 112) que se seguem, desejosos de que Deus desperte o mesmo senso em nossos corações:

Como as Escrituras Sagradas desejam ser tratadas com temor e humildade e ser mais penetradas por meio do estudo [!] com oração piedosa do que com perspicácia do intelecto, é impossível para aqueles que dependem do seu intelecto e que se apressam a adentrar a Escritura com pés sujos, semelhantes a porcos, como se a Escritura fosse meramente uma espécie de sabedoria humana, não fazer mal a si mesmos e a outros a quem instruem.

6 CONCLUSÃO

Concluímos salientando um dos maiores benefícios decorrente do método hermenêutico utilizado pelos Reformadores, a saber, o equilíbrio. Ao encarar a Bíblia em seu caráter divino/humano, os reformadores livraram-se de cair numa série de erros hermenêuticos que podem ser facilmente observados em qualquer livro que trate da história da interpretação bíblica.

Lopes ressalta a importância de mantermos “A divindade e a humanidade das Escrituras [...] em equilíbrio” (2007, p. 26) e nos chama a atenção para o perigo de se enfatizar um aspecto em detrimento do outro. Como exemplo, ele cita o caso dos teólogos (liberais) que enfatizaram o lado humano, influenciados pelo “[...] método histórico-crítico de interpretação, que surgiu com o Iluminismo, ao adotar os pressupostos racionalistas quanto às Escrituras, contrários a sua origem divina” (LOPES, 2007, p. 26). Em conseqüência de tal postura os conceitos de revelação, inspiração, providência de Deus, bem como tudo que envolva um caráter sobrenatural foi absolutamente rejeitado. “Como resultado, a Bíblia passou a ser vista, não como Palavra de Deus em sua inteireza, mas como o registro da fé de comunidades religiosas, primeiro judaica e depois cristã” (LOPES, 2007, p. 26). Para eles a Bíblia passou a ser encarada como um livro cheio de mitos e erros, composto de colagens de fontes diferentes e muitas vezes contraditórias, feitas por algum tipo de colecionador incompetente, longe do alto conceito sustentado pelos Reformadores.

No outro extremo, negligenciando o caráter humano, Lopes (2007, p.26) aponta para aqueles “movimentos e grupos religiosos” que “esqueceram através da história o fenômeno do distanciamento e encaram a Bíblia como se fosse um livro caído do céu, cuja interpretação dependia somente de oração, jejum e plenitude do Espírito Santo”. Tal postura é igualmente perigosa e pode levar o intérprete a desviar-se do real sentido expresso no texto bíblico, levando-o assim a toda gama de subjetivismo, tornando-o sujeito a quaisquer tipos de enganos e heresias que se possa conceber.

O método gramático-histórico nos legou a Reforma e até hoje, quase 500 anos após, continua sendo utilizado por homens fiéis a Deus e a sua Palavra. Para não corrermos o risco de sermos mal-compreendidos, gostaríamos de afirmar que a verdade está na Palavra, não no método. A Bíblia é inerrante, não o método. Contudo, ao longo dos séculos o método utilizado pelos Reformadores tem respeitado o caráter divino/humano das Escrituras e assim, honrado ao Senhor que no-la revelou. Talvez por este motivo é que tenha sido do agrado de Deus despertar a Sua igreja tantas vezes ao longo da história através de homens, que como os Reformadores, empregavam este método no exame da Palavra.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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LUTERO, M. Nascido Escravo. São José dos Campos: Fiel, 2009.

MCGRATH, A. E. Teologia Histórica: uma introdução à história do pensamento cristão. São Paulo: Cultura Cristã, 2007.

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