terça-feira, 21 de junho de 2011

ASSIM FIZERAM OS REFORMADORES

Um olhar sobre o método hermenêutico utilizado pelos Reformadores

MESQUITA NETO, Nelson Ávila

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho se propõe a apresentar, sem a pretensão de ser exaustivo, algumas das principais características do método hermenêutico (gramático-histórico) utilizado pelos Reformadores. O intérprete moderno fará bem em observá-los.

Iniciaremos com uma breve nota histórica e biográfica que tem por objetivo delimitar o uso de alguns termos aqui empregados, como “Reforma” e “método gramático-histórico”, bem como descrever sucintamente a vida dos dois homens sobre os quais se fundamenta este trabalho, a saber, Lutero e Calvino. Dentre todos os Reformadores, estes foram escolhidos aqui pela incomparável influência que exerceram, bem como pelo grandioso legado que nos deixaram. Diferentemente de outros Reformadores, muitas das obras de Lutero e Calvino podem ser facilmente acessadas em nossos dias e isto contribui também para a posição destes no presente estudo.

Ao longo do trabalho, tocaremos ainda na questão do caráter divino/humano das Escrituras e as dificuldades que este caráter impõe aos intérpretes que dela se aproximam. Logo após, será apresentada a forma como os Reformadores buscaram ultrapassar tais dificuldades, mostrando algumas das características de sua abordagem, as quais serão esboçadas mais de perto nas seções intituladas “O Livro Humano” e “O Livro Divino”. É nosso intuito que este breve panorama possa auxiliar de algum modo aqueles que objetivam a fidelidade no trato com a Palavra de Deus. Este era o alvo dos Reformadores e podemos dizer que alcançaram êxito na maior parte de seus labores.

2 BREVE NOTA HISTÓRICA E BIOGRÁFICA

De acordo com McGrath, “O termo ‘Reforma’ é usado por historiadores e teólogos para se referir ao movimento da Europa ocidental que teve como expoentes Martinho Lutero, Huldrych Zwingli (Zwinglio) e João Calvino”. Este movimento “[...] promoveu a reforma moral, teológica e institucional da igreja cristã nessa região” e “[...] procurou conduzir a igreja ocidental a fundamentos mais bíblicos para seu sistema de crenças, moralidade e estruturas” (2007, p. 175). Todavia, apesar de isto ser absolutamente verdade, o termo “Reforma” é freqüentemente empregado em vários outros sentidos. “Sua definição pode ser constituída de quatro elementos [...]: luteranismo; a igreja reformada, chamada com freqüência de ‘calvinismo’; a ‘Reforma radical’, conhecida até hoje como ‘anabatismo’; e a ‘contra-Reforma’ ou ‘Reforma católica’” (MCGRATH, 2007, p. 177).

No presente trabalho nos referiremos a “Reforma” nos termos dos dois primeiros elementos, ou seja, o luteranismo e o calvinismo, o que no conceito de McGrath (2007, pp. 177, 178) seria melhor definido como “Reforma magisterial”, em virtude de abarcar a ambos, contudo, nos limitaremos a empregar simplesmente a palavra “Reforma”, não querendo gerar qualquer tipo de má compreensão que possa advir ao incluir-se a palavra magistério.

Na era da Reforma, “[...] considerada, de modo geral, uma das mais criativas da história da teologia cristã” (MCGRATH, 2007, p.182), dos três teólogos mencionados anteriormente, destacam-se especialmente Calvino e Lutero. McGrath (2007, p. 182) escreve que “apesar de Zwinglio ser uma figura central por si mesmo, foi obscurecido pelo talento criativo e o impacto teológico de Lutero e Calvino” e, como citado de antemão, dialogaremos especificamente com o pensamento dos últimos.

No que diz respeito à história da interpretação bíblica, Lopes (2007, p. 167) nos conta que “os princípios interpretativos dos Reformadores”, os quais apresentaremos mais adiante, “[...] serviram de base para o surgimento da interpretação gramático-histórica que veio a prevalecer na Igreja após a Reforma”. Por “interpretação gramático-histórica”, devemos compreender que “a expressão grammatico se aproximava daquilo que entendemos pelo termo literal, [...] como sendo o significado simples, claro, direto ou habitual” (KAISER E SILVA, 2009, p. 33). Não devemos entender a expressão como se referindo apenas à “gramática” que era usada. “Igualmente, o contexto ‘histórico’ em que o texto foi redigido era também muito significativo para essa perspectiva, visto que desejava se aproximar o quanto fosse possível dos tempos e contextos em que o autor original estava falando” (KAISER E SILVA, 2009, p. 33). Por alguns mal-entendidos levantados a partir deste termo, Walter Kaiser (KAISER E SILVA, 2009, p. 33) sugeriu a substituição pela expressão “sintático-teológico”, todavia, manteremos aqui a expressão “gramático-histórico”.

Passemos agora um breve olhar sobre a vida dos dois grandes homens em torno dos quais gira nosso trabalho.

2.1 O Reformador Alemão

Justo L. Gonzalez (2009, p. 43) declara que “poucos personagens na história do cristianismo têm sido discutidos tanto ou tão calorosamente como Martinho Lutero”. Há quem o considere como “[...] o ‘bicho papão’ que destruiu a unidade da igreja, a besta selvagem que pisou na vinha do Senhor, um monge renegado que se dedicou a destruir as bases da vida monástica” (GONZALEZ, 2009, p. 43).

Há o outro lado, porém, que o têm como “[...] o grande herói que fez voltar, uma vez mais, a pregação do evangelho puro, o campeão da fé bíblica, o reformador de uma igreja corrompida” (GONZALEZ, 2009, p. 43).

O certo é que, nos últimos tempos, “[...] tanto católicos como protestantes se têm achado na obrigação de corrigir certas opiniões formadas, não pela investigação histórica, mas pelo fragor da polêmica” (GONZALEZ, 2009, p. 43). Gonzáles (2009, p. 43) afirma que “hoje são poucos os que duvidam da sinceridade de Lutero e há muitos católicos que afirmam que o protesto do monge agostinho foi mais do que justificável e que em muitos pontos tinha razão”.

Paul Althaus (apud GEORGE, 2006, p. 53) chegou mesmo a referir-se a Lutero como um “oceano”, e verdadeiramente há muito conteúdo sobre o qual navegar quando o assunto é o Reformador alemão. Contudo, visto não ser biográfico o objetivo do presente trabalho, resumiremos sua história nas palavras de Timothy George (2006, p. 53):

Martinho Lutero nasceu em 10 de novembro de 1483, em Eisleben, filho de um minerador de prata de classe média. Destinado para o estudo de Direito, voltou-se para o mosteiro, no qual, após muitas lutas, desenvolveu uma nova compreensão de Deus, da fé e da igreja. Isso o envolveu num conflito com o papado, seguindo de sua excomunhão e da fundação da Igreja Luterana, a qual presidiu até morrer em 1546.

Não poderíamos concluir esta nota sem antes louvarmos os esforços de Lutero em traduzir a Bíblia para o alemão, afim de que o povo comum de sua terra pudesse ter acesso ao texto sagrado. Nas palavras de Gonzalez (2009, p. 77), “A Bíblia alemã foi uma das obras mais notáveis de Lutero. Mesmo que outros houvessem empreendido o mesmo trabalho, nenhuma tradução chegou a alcançar a estabilidade da de Lutero”.

2.2 O Reformador de Genebra

“Poucas pessoas na história do cristianismo têm sido tão surpreendentemente estimadas ou tão mesquinhamente desprezadas quanto João Calvino” (GEORGE, 2006, p.167). Todavia, apesar das críticas feitas ao Reformador genebrino, críticas estas, em sua grande maioria, frutos de um preconceito ignorante e não de uma reflexão histórico-teológica, o ministério deste homem foi fundamental na causa da Reforma do século XVI. Gonzalez (2009, p. 107) diz que, “sem dúvida, o mais importante sistematizador da teologia protestante no século XVI foi João Calvino”. Comparando Lutero a Calvino ele acrescenta: “Enquanto Lutero foi o espírito fogoso e propulsor do novo movimento, Calvino foi o pensador cuidadoso que forjou, das diversas doutrinas protestantes, um todo coerente” (GONZALES, 2009, p. 107).

Calvino nasceu em 1509 na cidade de Noyon (França), a nordeste de Paris. “Quando nasceu [...] Lutero já estava dando conferências na Universidade de Erfurt e Zuínglio estava-se ocupando de suas tarefas pastorais em Glarus” (GEORGE, 2006, p. 165). É inegável a influência dos escritos de Lutero sobre o pensamento de Calvino, ele próprio chegou a chamar o Reformador alemão de “pai muito respeitável” (GEORGE, 2006, p. 166). Não obstante, é igualmente inegável o fato de Calvino não poder ser definido de modo simplista como um mero discípulo de Lutero, ou uma extensão apenas daquele. É fato que “Lutero elogiou alguns dos primeiros escritos de Calvino que lhe haviam sido enviados”, e Gonzalez (2009, p. 118) afirma que, além disso, aquele “[...] havia dado boa acolhida às Institutas de Calvino”, a magnum opus do Reformador de Genebra.

Sobre a história de Calvino antes de sua conversão, McGrath (2007, p. 183) nos conta que ele estudou “[...] na Universidade de Paris, um meio acadêmico dominado pelo Escolasticismo, e se mudou depois para a universidade humanista de Orléans, onde estudou direito civil”. McGrath diz ainda que “apesar de se mostrar inicialmente interessado em uma carreira acadêmica, com vinte e poucos anos teve uma experiência de conversão que o levou a se associar cada vez mais aos movimentos de reforma em Paris que, por fim, provocaram o exílio de Calvino na Basiléia” (2007, p. 183).

Após abandonar sua terra natal, Calvino, por influência do Reformador francês Guilherme Farel, o qual veio a se tornar seu grande amigo, permaneceu em Genebra, colaborando para a causa da Reforma naquela cidade. Após uma série de problemas em decorrência da resistência da cidade em aceitar a “[...] base sólida de doutrina e disciplina” (MCGRATH, 2007, p. 184) que Calvino e Farel visavam estabelecer, Calvino foi expulso e viajou para Estrasburgo, onde amadureceu bastante na companhia do Reformador Martin Bucer.

Alguns anos depois, Calvino foi chamado de volta à Genebra, onde permaneceu até sua morte em 1564. Há muito mais a ser dito sobre o grande Reformador genebrino. Poderíamos tratar de sua vasta obra literária; de seus esforços nas áreas da educação (do qual a fundação da Universidade de Genebra é um exemplo), da política, da economia etc.; contudo, por uma questão de espaço e objetivo, gostaríamos de findar esta breve nota biográfica, antes de passarmos a abordar o caráter das Escrituras e as dificuldades que se apresentam aos seus intérpretes, citando as palavras finais de Calvino aos ministros de Genebra, revelando com isto um pouco da imensa humildade daquele grande homem de Deus: “Meus pecados sempre me desgostaram. ... Rogo-vos, que me perdoeis o mal, e se porventura tenha havido algum bem, ... fazei dêle (sic) um exemplo” (CALVINO apud VAN HALSEMA, 1968, p. 203).

3 O CARÁTER DAS ESCRITURAS E AS DIFICULDADES DO INTÉRPRETE

A Bíblia é um Livro Divino, fruto de uma auto-revelação comunicada por Deus através de vários séculos e de diferentes modos, ou como expressa o autor da epístola aos Hebreus: “muitas vezes, e de muitas maneiras” (Heb. 1:1). Ela se apresenta como tendo sido inspirada (qeópneustoV [theopneustos]) pelo próprio Deus (2 Tim. 3:16). Ferreira e Myatt (2007, p. 112) esclarecem que aqui, “Embora a palavra ‘inspirada’ seja a tradução mais comum, a idéia mais correta é que a palavra foi soprada (ou respirada) por Deus”. Tudo isto deve nos fazer conscientes do caráter sobrenatural da Palavra de Deus e de que não a devemos tratar como um livro qualquer. O intérprete, ao aproximar-se da Bíblia imediatamente se deparará com aquilo que Lopes (2007, p. 26) chama de “Distanciamento Natural”, em conseqüência da posição de Deus como o Criador e sustentador de todas as coisas em contraposição ao homem, uma criatura limitada e finita. Haverá ainda o “Distanciamento Espiritual” e “Moral” (LOPES, 2007, p. 27), visto ser Deus absolutamente Espiritual, Perfeito e Santo, enquanto nós possuímos um caráter corrompido e pecaminoso, tendendo sempre ao erro.

Todavia, a Bíblia também é um livro humano. Em seu processo revelacional, aprouve ao Senhor escolher homens por meio dos quais faria conhecida Sua vontade, e como a Confissão de Fé de Westiminster (cap. 1, seção 1) bem expressa: “[...] para melhor preservação e propagação da verdade, para o mais seguro estabelecimento e conforto da Igreja contra a corrupção da carne e malícia de Satanás e do mundo, foi igualmente servido fazê-la escrever toda”. Deus levou em consideração as peculiaridades de cada um destes homens, bem como o contexto no qual encontravam-se inseridos, por isso declaramos possuir a Bíblia um caráter igualmente humano.

Visto que a Bíblia foi escrita a mais de 2000 anos, e ser inconcebível a idéia de que em dois milênios de história a cosmovisão das pessoas tenha permanecido exata e inalteravelmente a mesma, isto nos coloca numa linha do tempo extremamente distanciada do período em que as realidades bíblicas aconteceram.

Augustus N. Lopes (2007, p. 24) assevera que “A distância temporal, num mundo em constantes mudanças, faz com que a maneira de encarar o mundo, os aspectos culturais e lingüísticos dos escritores da Bíblia se percam no passado distante”; e acrescenta que “Na época do Novo Testamento o distanciamento já era uma realidade”. Isto, às vezes, pode nos trazer grande desânimo, já que o entendimento de muitas peculiaridades do Texto Sagrado torna-se um empreendimento a exigir do intérprete esforço descomunal, tais como longos períodos de pesquisa e profunda meditação, sem, contudo, qualquer garantia de que se chegará à compreensão plena das peculiaridades envolvidas. Na verdade, há quem diga ser absolutamente inútil tal esforço, dado sua “impossibilidade”.

De fato, é absolutamente impossível regressar ao período bíblico e apurar em primeira mão os fatos decorrentes daquela época, contudo, é do mesmo modo impossível retornar a qualquer período de qualquer época da história e, ainda assim, tomamos outros relatos como válidos e inquestionáveis para a reconstrução de todos os períodos históricos do qual temos conhecimento. Por conseguinte, mesmo reconhecendo a dificuldade que se nos apresenta, não concordamos com aqueles que contraditoriamente postulam essa completa impossibilidade.

Outra grande dificuldade que se impõe ao intérprete é o chamado “distanciamento lingüístico”. Lopes (2007, p. 25) destaca que “as línguas em que a Bíblia foi escrita já não existem”. Mesmo nos países onde ela foi escrita, o hebraico, o grego e o aramaico já não são mais falados. É importante frisar que “como cada língua tem seu jeito próprio de comunicar conceitos (apesar de uma estrutura comum a todas), os leitores da Bíblia devem levar em conta estas peculiaridades” (LOPES, 2007, p. 25).

O distanciamento autoral também é um problema a ser enfrentado, pois, os autores bíblicos não estão mais vivos, de modo que não os podemos consultar diante de uma dificuldade hermenêutica. Aqueles autores escreveram com uma intenção a ser expressa e, em muitos casos, para responder a questões específicas de suas próprias sociedades, sendo assim, o hermeneuta que se aproxima de seus escritos deve estar consciente deste fato e apto a enfrentá-lo.

Como temos apresentado, nem sempre é tarefa fácil estabelecer o sentido de algumas passagens da Escritura, todavia, aqui podemos observar como os Reformadores lidaram com as mesmas dificuldades que nós em sua própria época, e como fizeram para driblar algumas destas dificuldades.

4 O LIVRO HUMANO: LABUTARE

4.1 Os Reformadores e a necessidade do estudo

A consciência dos Reformadores sobre o aspecto humano das Escrituras, embora permanecessem aferrados na certeza de que em sua maior parte esta era absolutamente clara, em virtude de sua origem divina, os impulsionaram a considerar a necessidade de estudá-las e pesquisá-las com extremo afinco. Calvino expressa o processo hermenêutico em duas palavras: “orare et labutare” (ore e trabalhe). Eles compreenderam que “pelo estudo cuidadoso das línguas originais, pelo conhecimento da cultura e da época em que foram escritas, poder-se-ia chegar ao sentido provável das passagens obscuras” (LOPES, 2007, pp. 162, 163), ou seja, é preciso “labutare”. Por este motivo, buscaram utilizar-se de todos os meios possíveis para se chegar ao real sentido do texto bíblico, fazendo “[...] uso abundante da erudição antiga, citando comentaristas medievais, as obras dos pais apostólicos e obras de contemporâneos” (LOPES, 2007, p. 165).

“Melancton, amigo de Lutero e colega dele em Wittenberg, disse que Lutero conhecia a teologia dogmática tão bem no início de seu ministério que era capaz de citar de memória páginas inteiras de Gabriel Biel (texto padrão dogmático, publicado em 1488)” (PIPER, 2005, p. 98). Lopes (In FERREIRA, 2010, p.230) informa que “seu [de Lutero] profundo conhecimento da literatura da época transparece claramente” em seu comentário de Gálatas (1535), onde não apenas cita, mas faz uma avaliação crítica de:

[...] escritores gregos como Virgílio, Esopo, Aristides, Aristóteles, Cícero, Demóstenes, Ovídio, Plínio e Platão, para mencionar uns poucos. [...] demonstra familiaridade também com as obras de Eusébio, Suetônio, Quintiniano, Justino e Porfídio. Conhece também os escritos de alguns dos Pais da Igreja como Ambrósio, Orígines, Cipriano, Irineu e Jerônimo. [...] menciona também as obras de comentaristas medievais como Gregório de Nissa, Pedro Lombardo, Occam, Scotus, Tomás de Aquino e Bernardo de Claraval. E conhece também até mesmo as obras de Erasmo, a quem critica continuamente.

Semelhantemente nos é informado que Calvino “Dedicou-se ao estudo do latim, do grego, da teologia e dos autores clássicos, além de fazer cursos na área de Direito” (LOPES, 2009, p. 14). Nas palavras do renomado historiador Philip Schaff (apud KAISER E SILVA, 2009, p. 243):

Calvino foi um gênio exegético de primeira ordem. Seus comentários são insuperáveis em termos de originalidade, profundidade, perspicácia, solidez e valor permanente (...) Reuss, o editor chefe das obras [de Calvino], ele próprio um eminente estudioso da Bíblia, afirma que Calvino está “sem sombra de dúvida entre os grandes exegetas do século 16” (...) Diestel, o melhor historiador da exegese do Antigo Testamento, o chama de “criador da autêntica exegese”.

Para os Reformadores, a “graça comum” que fora derramada mesmo sobre descrentes, não poderia ser desprezada, antes, porém, convertida em glória a Deus. Calvino escreveu:

Mas se é a vontade do Senhor que sejamos auxiliados pela física, dialética, matemática e outras disciplinas tais, através do trabalho e do ministério dos descrentes, façamos uso dessa assistência. Pois se negligenciarmos a dádiva das artes, oferecida gratuitamente por Deus, devemos sofrer a justa punição por nossa indolência (CALVINO apud KAISER E SILVA, 2009, p. 245).

4.2 Os Reformadores e a superioridade do texto bíblico

Tais demonstrações de erudição repousavam sobre uma humilde reverência em face do Texto Sagrado. Eles não tinham o objetivo de impor suas próprias conjecturas ao texto, nem de fundamentar suas interpretações sobre a “autoridade” de outros intérpretes e expositores (como o fazia a Igreja Católica Romana, adaptando a mensagem bíblica ao relato dos pais apostólicos, dos dogmas e do papado), mas empenhavam-se por derivar suas conclusões do próprio escrito divino. Calvino, por exemplo, “[...] tinha aversão a quem pregava suas próprias idéias no púlpito” e chegou mesmo a dizer que “quando adentramos o púlpito, não podemos levar conosco nossos próprios sonhos e fantasias” (FERREIRA, 2009, p. 7). Do mesmo modo, Lutero declarou:

O que eles [os sofistas] deveriam fazer é vir ao texto vazios, derivar suas idéias da Escritura Sagrada, e então prestar atenção cuidadosa às palavras, comparar o que precede com o que vem em seguida, e se esforçar para agarrar o sentido autêntico de uma passagem em particular, em vez de ler as suas próprias noções nas palavras e passagens da Escritura, que eles geralmente arrancam de seu contexto” (apud LOPES In FERREIRA, 2010, p. 223).

Piper (2005, p. 98) nos escreve que “Lutero elevou o texto bíblico muito acima dos ensinamentos dos comentadores ou dos pais da igreja” e acrescenta, “Não foi falta de disposição para estudar os pais e os filósofos que limitaram seu foco; foi uma paixão dominadora pela superioridade do próprio texto bíblico”. Em 1538 Lutero disse que “aquele que for bem familiarizado com o texto da Escritura [...] é um teólogo distinto. Pois uma passagem ou texto bíblico vale mais que comentários de quatro autores” (apud PIPER, 2005, p. 98). Ele, assim como os demais Reformadores, não tinha, com isso, “[...] a intenção de negar a História e seu desenvolvimento” (LOPES, 2007, p. 166), mas, ao postularem o princípio do “sola Scriptura” (somente a Escritura) e o ideal do ad fontes (o retorno às fontes documentais), seu intento era introduzir, no próprio seio da História, “[...] um princípio crítico que permitisse julgá-la, bem como as doutrinas dos Pais” (LOPES, 2007, p. 166).

Lopes (2007, p. 166) nos conta que “para os Reformadores e seus sucessores, os Pais e os escolásticos tinham autoridade na medida em que concordavam com a Escritura”. E aqui cabe ressaltar o método de comparar Escritura com Escritura (derivado dos princípios citados supra) adotado por eles, o qual postula como “[...] a única regra infalível de interpretação das Escrituras [...] a própria Escritura” (LOPES, 2007, p. 163). Lutero expressa este conceito claramente ao afirmar: “Se são obscuras num lugar, são claras em outros” (apud LOPES, 2007, p. 163). Isto contribuiu para determinar o real sentido do texto bíblico a partir de outras partes do mesmo, e não da tradição, de decisões eclesiásticas, de argumentos filosóficos, intuições espirituais ou qualquer outro parâmetro que se possa propor.

É por esta razão que não nos deve causar espanto o fato de encontrarmos em seus escritos comentários aos Pais como estes dois que se seguem:

Os textos dos pais santos devem ser lidos somente por um tempo, para que sejamos por eles guiados às Escrituras Sagradas. Todavia, nós os lemos somente para nos perdermos neles e nunca chegarmos às Escrituras. Somos como homens que estudam os sinais e nunca andam pelo caminho. Os queridos pais desejaram que, por seus escritos, fôssemos guiados às Escrituras apesar de somente a Escritura ser nosso vinhedo, no qual todos nós devemos trabalhar e labutar (LUTERO apud PIPER, 2005, pp. 98, 99).

Devemos ler os Pais cautelosamente, e pesá-los na balança dourada, pois freqüentemente tropeçam e se desviam, e misturam com seus livros muitas coisas dos monges. Agostinho teve mais trabalho para se livrar dos escritos dos Pais do que em combater os heréticos... Quanto mais leio os escritos dos Pais, mais me ofendo, pois apesar da sua reputação e autoridade, diminuíram o valor dos livros e escritos dos santos apóstolos de Cristo (LUTERO apud LOPES, 2007, p. 166).

4.3 Os Reformadores e o método alegórico

Esta atitude também consistia numa reação ao método alegórico de interpretação, característico da escola de Alexandria e popularizado nos escritos de Orígenes (durante o período Patrístico), o qual ganhou força dentro da igreja, chegando inclusive a ser dominante durante toda a Idade Média.

Não é que os Reformadores desconsiderassem a existência de alegorias na Bíblia, todavia, eles as encaravam como uma espécie de quadro ou ilustração firmado solidamente sobre a doutrina, o qual tinha por pano de fundo um sentido literal, e este sentido era o que deveria ser buscado. Desta forma, à semelhança da escola de Antioquia, eles passaram a refutar qualquer tipo de alegorização que não fosse estritamente validada pelo próprio contexto da passagem que estivesse sendo alegorizada, bem como a idéia de que cada passagem da Escritura continha quatro sentidos. O Reformador alemão escreveu: “A Palavra de Deus deve ser interpretada em seu sentido mais claro, conforme as próprias palavras transmitem” (LUTERO, 2009, p.70).

Lutero protesta asperamente a este respeito:

A Alegoria de um sofista é sempre retorcida; ela rasteja e se curva como uma cobra, que nunca se endireita, quer caminhe, quer se arraste, que (sic) fique parada; somente quando morre é que uma cobra fica direita... Quando eu era um monge, era muito versado em significados espirituais e alegorias. Mais tarde, porém, quando cheguei ao conhecimento de Cristo através da carta aos Romanos, vi que todas as alegorias são vãs, exceto aquelas que Cristo usou... Jerônimo e Orígines, Deus os perdoe, são os responsáveis pela alegoria ser tão estimada [na Igreja]. Tudo o que Orígines escreveu não vale uma única palavra de Cristo. Quanto a mim, já abandonei estas bobagens, e minha melhor arte é pregar a Escritura em seu sentido único (apud LOPES, 2007, p. 161).

Também Calvino, ao comentar o texto de Efésios 3:18, demonstra desprezo pelas alegorias feitas por Agostinho e Ambrósio:

O que vem a seguir é por si só suficientemente claro, mas que até agora tem sido obscurecido por uma variada gama de interpretações. Agostinho causa muito deleite com sua sutileza, mas que nada tem a ver com o tema. Pois aqui ele busca não sei que mistério na figura da cruz – ele faz a largura ser o amor, a altura ser a esperança, o cumprimento ser a paciência e a profundidade, a humildade. Toda essa sutileza nos agrada, mas o que tem isso a ver com a intenção de Paulo? Por certo que não mais que a opinião de Ambrósio, que denota a forma de uma esfera. Pondo de lado o ponto de vista de outros, afirmarei o que será universalmente reconhecido ser o significado simples e verdadeiro [...] Por essas dimensões, Paulo nada mais tem em mente senão o amor de Cristo do qual fala mais adiante [...] É como se dissesse: “Em toda e qualquer direção em que os homens olhem, nada encontrarão na doutrina da salvação que não esteja relacionado com o amor de Cristo” [...] O significado ficará ainda mais claro se o parafrasearmos assim: “Para que sejais capazes de compreender o amor que é o cumprimento, a largura, a profundidade e a altura, isto é, a plena perfeição de nossa sabedoria.” A metáfora é extraída da matemática, que toma partes como expressão do todo (CALVINO, 2007, pp. 81, 82)

4.4 Os Reformadores e a intenção autoral

É interessante notar que, ao mesmo tempo em que critica a abordagem alegórica, Calvino, no texto anterior, aponta para outra característica marcante da hermenêutica utilizada na Reforma, a saber, a intenção do autor. Ele se utiliza de expressões como “a intenção de Paulo”, ou ainda, “Paulo [...] tem em mente” etc. como meio para se descobrir o verdadeiro significado do texto bíblico. Também Lutero, em seu segundo comentário à epístola aos Gálatas (1535), “[...] concentra-se insistentemente em determinar a intenção de Paulo em cada passagem” (LOPES In FERREIRA, 2010, p. 223). Ao iniciar sua análise de Gálatas 2, critica Jerônimo afirmando que este “...nem toca no ponto verdadeiro da passagem, pois não leva em conta a intenção ou propósito de Paulo” (LUTERO apud LOPES In FERREIRA, 2010, p. 223). Posteriormente, “[...] comentando Gálatas 1.3, Lutero volta a criticar Jerônimo, afirmando que o mesmo deixou passar inteiramente desapercebido o ponto principal do versículo, por ter falhado em captar a intenção de Paulo ali” (LOPES In FERREIRA, 2010, p. 223). Determinante para esta abordagem e estabelecimento da real intenção pretendida pelo autor inspirado é o “contexto”, tanto imediato quanto geral, da passagem que estiver sendo analisada, assim como o próprio texto em seu formato original, o que nos leva ao tópico seguinte.

4.5 Os Reformadores e as línguas originais

Moisés Silva (KAISER E SILVA, 2009, p. 16) escreveu que “a linguagem humana, por sua própria natureza, é grandemente equívoca, isto é, capaz de ser compreendida em mais de uma maneira e se não fosse assim, nunca duvidaríamos do que as pessoas querem dizer quando falam”. Este é justamente um dos maiores problemas com o qual o hermeneuta, em todas as épocas, tem sido obrigado a lidar, em virtude do amplo campo semântico que as palavras assumem, principalmente no caso das Escrituras, visto, como já citado, terem sido escritas em línguas antigas, que sofreram muitas alterações, algumas das quais não se encontrando mais em uso.

Destarte, Piper (2005, p. 101) nos conta que Lutero estava intensamente convencido de que “poder ler grego e hebraico era um dos maiores privilégios e responsabilidades do pregador reformado”. O Reformador de Wittenberg declarou:

Sem as línguas originais não poderíamos ter recebido o Evangelho. As línguas originais são a bainha que contêm a espada do Espírito; elas são a [caixa] que contêm as inestimáveis jóias do pensamento da Antigüidade; elas são a vasilha que guarda o vinho; e como o Evangelho diz, elas são as cestas nas quais os pães e os peixes são guardados para alimentar a multidão (LUTERO apud PIPER, 2005, p. 102).

O temor de Lutero era o de que, ao se desprezar as línguas originais, o povo se tornasse indefeso diante de toda sorte de heresias, como exemplificado em suas palavras ao referir-se aos Pais apostólicos e aos Valdenses:

Em tempos passados, os pais freqüentemente se enganavam, pois eram ignorantes das línguas. Em nossos dias, há alguns que, como os Valdenses, não acham que as línguas tenham qualquer utilidade; mas, embora sua doutrina seja boa, eles têm freqüentemente errado no verdadeiro sentido do texto sagrado; estão sem armas contra o engano, e tenho grande temor de que sua fé não permaneça pura (LUTERO apud PIPER, 2005, p.102).

Tal declaração concorda com o alerta feito por Moisés Silva (KAISER E SILVA, 2009, pp. 51, 52) onde, embora instando para que não se exagere a importância das línguas originais, escreve que “as versões em nossa língua por si mesmas não podem ser a base exclusiva para a formulação da doutrina. Devemos ser cuidadosos em não adotar novas idéias se estas ainda não foram analisadas de acordo com o texto original”.

Lutero atribui a própria vitória da causa Reformada “[...] ao poder penetrante das línguas originais” (PIPER, 2005, p. 103), e testemunha como elas influenciaram sua causa:

Se os originais não tivessem me dado certeza sobre o verdadeiro significado da Palavra, eu teria permanecido um monge acorrentado, ocupado em pregar sossegadamente os erros católicos na obscuridade do mosteiro; o papa, os sofistas e seu império anticristão teriam permanecido inabaláveis (LUTERO apud PIPER, 2005, p. 103).

Para Lutero:

É um pecado e uma vergonha não conhecer nosso próprio Livro ou não entender as palavras de nosso Deus; é um pecado e uma perda maior ainda que não estudemos as línguas originais, especialmente nestes dias, em que Deus está nos oferecendo e dando homens e livros e toda facilidade e encorajamento para esse estudo. Ele deseja que sua Bíblia seja um livro aberto. Ah, como nossos queridos pais teriam ficado alegres se tivessem tido a oportunidade de estudar as línguas e vir, portanto, preparados às Escrituras Sagradas! Que esforço e labuta eles tiveram para juntar apenas algumas migalhas, enquanto nós, com metade do trabalho – sim, com quase nenhum trabalho – podemos adquirir o pão inteiro! Ah como seus esforços envergonham nossa indolência! (LUTERO apud PIPER, 2005, pp. 104, 105).

Esta ênfase no estudo das línguas originais também se fez presente na hermenêutica de Calvino; são constantes as citações feitas do original em seus comentários. Podemos perceber um pouco do método utilizado pelo Reformador Genebrino ao analisarmos este comentário do texto de Mateus 2.23 (“E foi habitar numa cidade chamada Nazaré, para que se cumprisse o que fora dito por intermédio dos profetas: Ele será chamado Nazareno”):

Mateus não deriva “nazareno” de “Nazaré”, como se existisse uma conexão etimológica real e certa entre as duas palavras. O que temos aqui é uma mera alusão. Nazir [em hebraico] significa santo e devotado a Deus, e por sua vez deriva-se de nazar, que significa separado. É certo que os judeus chamavam uma certa flor (aliás, a insígnia da coroa real) de nazar. Mas não há qualquer dúvida de que aqui Mateus usou a palavra no sentido de santo. Em nenhum lugar lemos que os nazarenos floresceram; mas lemos em Números 6.4 que eles eram separados para Deus conforme prescrito na Lei. Portanto, devemos entender a declaração de Mateus da seguinte forma: apesar de que José foi habitar em um canto da Galiléia [isto é, em Nazaré] por medo, Deus tinha um propósito maior; pois Nazaré havia sido determinada para ser o lar de Cristo, de forma que ele pudesse portar o nome de nazareno, que era apropriadamente seu (CALVINO apud LOPES, 2007, p. 165).

Neste trecho Calvino busca a intenção do evangelista a partir do conhecimento da língua empregada por ele, dos usos gramaticais, das circunstâncias em que escrevera a obra, dentre outras coisas (LOPES, 2007, p. 165), sendo a língua original em grande medida determinante, e isto fica claro ao referir-se às palavras nazir/nazar, dentro de seu contexto no Antigo Testamento, para alcançar o significado de Nazareno no pensamento judaico de Mateus.

Outro exemplo, dentre vários que poderiam ser citados, é o que se encontra no comentário de Colossenses 1:5:

Erasmo o traduz a verdadeira palavra do evangelho. Também estou ciente de que, segundo o idioma hebraico, Paulo faz uso freqüente do genitivo no lugar de um epíteto; mas as palavras de Paulo aqui são mais enfáticas. Pois ele chama o evangelho καψ έxοχήν (à guisa de eminência), a palavra da verdade, com vistas a depositar honra nela, para que mais pronta e firmemente à revelação que têm derivado daquela fonte. Assim, introduz-se o termo evangelho à guisa de aposição (CALVINO, 2010, pp. 495, 496).

O que temos apresentado até aqui é parte constituinte do método hermenêutico que ficou conhecido pelo nome de “gramático-histórico”. Este método poderá nos auxiliar de diversas maneiras ao lidarmos com a natureza das Escrituras, todavia, é preciso observar o modo como os Reformadores abordaram o caráter divino/espiritual da mesma, afim de que tenhamos uma visão mais ampla de sua metodologia.

5 O LIVRO DIVINO: ORARE

5.1 Os Reformadores e o distanciamento natural

Como já fizemos menção, a Bíblia é um livro divino e não deve ser lida como se lê um livro qualquer de religião. Ela é inspirada, autoritativa e inerrrante, devendo ser encarada tal qual se apresenta, e esta se apresenta não menos do que como a Palavra de Deus.

Em contraposição, o homem é um ser por natureza imensamente distanciado de Deus. “Ele é o Senhor, criador de todas as coisas, do céu e da terra. Somos suas criaturas, limitadas, finitas. Nossa condição de seres humanos impõe limites à nossa capacidade de entender e compreender as coisas de Deus” (LOPES, 2007, p. 26). Como, então, ultrapassar esta barreira (ou distanciamento) que se nos apresenta?

Lopes (2007, pp. 26, 27) diz que o próprio “[...] fato de sermos seres humanos tentando entender a mensagem enviada pelo Deus criador, em si só apresenta um distanciamento”. A resposta dos Reformadores diante deste fato encontra-se na iluminação do Espírito Santo.

Os Reformadores enfatizaram bastante a necessidade do papel iluminador do Espírito Santo na tarefa da interpretação das Escrituras. Calvino, que até chegou a receber o título de “o teólogo do Espírito Santo”, escreveu em sua obra célebre:

Elas [as Escrituras], sem dúvida, não são por si só suficientes para que se lhes dê o crédito devido, até que o Pai Celestial, manifestando sua divindade as redima de toda dúvida e então faça com que se lhes dê crédito. Assim pois, a Escritura nos satisfará e servirá de conhecimento para conseguir a salvação, somente quando sua certeza se funde à persuasão do Espírito Santo (CALVINO, 2006, pp. 43,44).

Calvino comentou também:

Portanto, iluminados pelo poder [do Espírito], acreditamos que as Escrituras são de Deus não pelo nosso próprio julgamento [observem isto!] nem pelo julgamento de qualquer outra pessoa; mas, acima de qualquer julgamento humano, afirmamos com absoluta certeza (como se estivéssemos contemplando a majestade do próprio Deus) que esta certeza nos chegou da própria boca de Deus, e não através do ministério de homens (apud PIPER, 2005, p. 133).

Para Calvino (2006, p. 33), “[...] o testemunho que o Espírito Santo dá é muito mais excelente que qualquer outra razão”, e isto não consiste em qualquer tentativa de depreciar o trabalho árduo exercido pelo hermeneuta, mas apenas numa confissão da total dependência do intérprete, frente ao Livro Santo, de algo (ou neste caso Alguém) que seja maior do que ele mesmo, e assim o conduza a verdade que de outro modo não seria capaz de alcançar por seus próprios esforços. As palavras de Calvino aqui parecem simplesmente fazer eco aquela verdade apresentada por Deus ao profeta Isaías: “Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos, os meus caminhos, diz o Senhor, porque, assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos, mais altos do que os vossos pensamentos” (Isa. 55:8-9). Ou aquilo que Paulo expressou tão bem em Romanos 11:33-34: “Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos! Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro?”.

5.2 Os Reformadores e os distanciamentos espiritual e moral

Alem da barreira natural, há também a espiritual e a moral. Em virtude do estado deplorável em que se encontra por conseqüência da Queda, o ponto de partida do intérprete deve ser “Transpor o abismo epistemológico” estabelecido por aquela (LOPES, 2007, p. 27). Aqui, mais uma vez os Reformadores enfatizaram a obra do Espírito Santo, o qual opera a regeneração e a conversão na vida do pecador eleito. Tal convicção levou os Reformadores a uma total dependência da liberdade da graça de Deus, e a travar imensa batalha contra o conceito de “livre-arbítrio”.

Em resposta ao livro de Erasmo, “The Freedom of the Will” (A Liberdade da Vontade), Lutero escreveu “The Bondage of the Will” (O Cativeiro da Vontade) e chegou a declarar que “o homem tem em seu poder uma liberdade da vontade para fazer ou não obras externas, reguladas pela lei e pelos castigos (...) Por outro lado, o homem, por si só, não tem a capacidade de purificar seu próprio coração e produzir dons divinos, com o verdadeiro arrependimento de pecados, um verdadeiro (ao contrário do artificial) temor de Deus, verdadeira fé, amor sincero, pureza (...)” (LUTERO apud PIPER, 2005, pp. 113, 114).

Lutero também escreveu, em contraposição a idéia de Erasmo que exaltava “[...] a vontade do homem como sendo livre para superar seus próprios pecados e sua escravidão” (PIPER, 2005, p. 114), que condenava, rejeitava e considerava erro:

[...] todas as doutrinas que exaltam nosso ‘livre arbítrio’, pois são diretamente opostas à mediação e à graça do nosso Senhor Jesus Cristo. Pois já que, aparte de Cristo, o pecado e a morte são nossos mestres e o Diabo é nosso deus e príncipe, não pode haver força ou poder, juízo ou sabedoria, pelo qual possamos nos adaptar e nos moldar para a retidão e a vida. Ao contrário, cegos e cativos, somos obrigados a ser súditos de Satanás e do pecado, fazendo e pensando o que lhe agrada e o que é antagônico a Deus e aos seus mandamentos (LUTERO apud PIPER, 2005, p. 115).

No centro dessa discussão, além da consciência deste distanciamento natural, espiritual e moral, também estava aquilo que já apresentamos outrora como a busca do sentido claro e literal do texto (que assim o é justamente por sua natureza divina). Por isso, Lutero crítica tanto o conceito quanto a metodologia de Erasmo:

Você [Erasmo] criou uma nova maneira de perder de vista o significado óbvio de um texto. Você insiste que os textos que se manifestam claramente contrários à idéia do “livre-arbítrio” devem ter alguma “explicação” que traga à tona o seu verdadeiro sentido. E nós devemos insistir que tal “explicação” só se torna necessária quando é absurdo manter o sentido literal de alguma passagem bíblica. Em todos os demais casos, devemos manter o sentido simples e natural das palavras, guiados pelas regras de gramática e de hábitos de linguagem que Deus criou entre os homens. Se agirmos de outro modo, nada mais restará sobre o que possamos ter qualquer certeza. Não basta afirmar que uma “explicação” deve ser necessária. Em cada caso, compete-nos indagar se existe a necessidade, ou se deve haver uma “explicação”. Se não puder ser provado que isso se faz necessário, nada se terá conseguido (LUTERO, 2009, p. 69).

Este texto de Lutero parece meio deslocado nesta porção do trabalho em que consideramos a natureza divina das Escrituras, todavia se faz necessário aqui para nos mostrar como nossa teologia pode interferir significativamente no modo como lemos e interpretamos as Escrituras e, por isso, mais uma vez reiteramos a ênfase dos Reformadores na iluminação do Espírito Santo. O remédio oferecido por eles para que ultrapassemos as barreiras (ou distanciamentos) que se levantam diante de nós em virtude do caráter divino das Escrituras, em contraposição a nossa humanidade e conseqüente corrupção que tende sempre ao engano, não é outro senão a “oração”. Devemos constantemente pedir o direcionamento de Deus para a compreensão da Sua Palavra, para que esta corrupção que habita em nós não nos impeça de ouvir Sua doce voz.

Encerramos esta seção com as palavras de Lutero (apud PIPER, 2005, p. 112) que se seguem, desejosos de que Deus desperte o mesmo senso em nossos corações:

Como as Escrituras Sagradas desejam ser tratadas com temor e humildade e ser mais penetradas por meio do estudo [!] com oração piedosa do que com perspicácia do intelecto, é impossível para aqueles que dependem do seu intelecto e que se apressam a adentrar a Escritura com pés sujos, semelhantes a porcos, como se a Escritura fosse meramente uma espécie de sabedoria humana, não fazer mal a si mesmos e a outros a quem instruem.

6 CONCLUSÃO

Concluímos salientando um dos maiores benefícios decorrente do método hermenêutico utilizado pelos Reformadores, a saber, o equilíbrio. Ao encarar a Bíblia em seu caráter divino/humano, os reformadores livraram-se de cair numa série de erros hermenêuticos que podem ser facilmente observados em qualquer livro que trate da história da interpretação bíblica.

Lopes ressalta a importância de mantermos “A divindade e a humanidade das Escrituras [...] em equilíbrio” (2007, p. 26) e nos chama a atenção para o perigo de se enfatizar um aspecto em detrimento do outro. Como exemplo, ele cita o caso dos teólogos (liberais) que enfatizaram o lado humano, influenciados pelo “[...] método histórico-crítico de interpretação, que surgiu com o Iluminismo, ao adotar os pressupostos racionalistas quanto às Escrituras, contrários a sua origem divina” (LOPES, 2007, p. 26). Em conseqüência de tal postura os conceitos de revelação, inspiração, providência de Deus, bem como tudo que envolva um caráter sobrenatural foi absolutamente rejeitado. “Como resultado, a Bíblia passou a ser vista, não como Palavra de Deus em sua inteireza, mas como o registro da fé de comunidades religiosas, primeiro judaica e depois cristã” (LOPES, 2007, p. 26). Para eles a Bíblia passou a ser encarada como um livro cheio de mitos e erros, composto de colagens de fontes diferentes e muitas vezes contraditórias, feitas por algum tipo de colecionador incompetente, longe do alto conceito sustentado pelos Reformadores.

No outro extremo, negligenciando o caráter humano, Lopes (2007, p.26) aponta para aqueles “movimentos e grupos religiosos” que “esqueceram através da história o fenômeno do distanciamento e encaram a Bíblia como se fosse um livro caído do céu, cuja interpretação dependia somente de oração, jejum e plenitude do Espírito Santo”. Tal postura é igualmente perigosa e pode levar o intérprete a desviar-se do real sentido expresso no texto bíblico, levando-o assim a toda gama de subjetivismo, tornando-o sujeito a quaisquer tipos de enganos e heresias que se possa conceber.

O método gramático-histórico nos legou a Reforma e até hoje, quase 500 anos após, continua sendo utilizado por homens fiéis a Deus e a sua Palavra. Para não corrermos o risco de sermos mal-compreendidos, gostaríamos de afirmar que a verdade está na Palavra, não no método. A Bíblia é inerrante, não o método. Contudo, ao longo dos séculos o método utilizado pelos Reformadores tem respeitado o caráter divino/humano das Escrituras e assim, honrado ao Senhor que no-la revelou. Talvez por este motivo é que tenha sido do agrado de Deus despertar a Sua igreja tantas vezes ao longo da história através de homens, que como os Reformadores, empregavam este método no exame da Palavra.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CALVINO, J. Efésios. Fiel: São José dos Campos, SP, 2007.

CALVINO, J. Gálatas, Efésios, Filipenses e Colossenses. São José dos Campos: Fiel, 2010.

CALVINO, J. Institución de la Religión Cristiana. Capellades, Barcelona: FELiRe, v. I, 2006 (tradução minha).

FERREIRA, F.; MYATT, A. Teologia Sistemática: Uma análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual. São Paulo: Vida Nova, 2007.

FERREIRA, F. João Calvino e a Pregação das Escrituras. Fé Para Hoje, São José dos Campos: Fiel, n. 35, pp. 3-10, Nov., 2009.

GEORGE, T. Teologia dos Reformadores. São Paulo: Vida Nova, 2006.

GONZALEZ, J. L. Uma História Ilustrada do Cristianismo: a era dos reformadores. São Paulo: Vida Nova, 2009.

KAISER, W. C.; SILVA, M. Introdução à Hermenêutica Bíblica. São Paulo: Cultura Cristã, 2a Ed., 2009.

LOPES, A. N. A Bíblia e Seus Intérpretes: Uma breve história da interpretação. São Paulo: Cultura Cristã, 2007.

LOPES, A. N. Lutero Ainda Fala: um ensaio em história da interpretação bíblica. In FERREIRA, F. (Ed.). A Glória da Graça de Deus: ensaios em honra a J. Richard Denham Jr. Sobre história, teologia, igreja e sociedade. São José dos Campos: Fiel, 2010.

LOPES, A. N. João Calvino e a Universidade. Fé Para Hoje, São José dos Campos: Fiel, n. 35, pp. 14-18, Nov., 2009.

LUTERO, M. Nascido Escravo. São José dos Campos: Fiel, 2009.

MCGRATH, A. E. Teologia Histórica: uma introdução à história do pensamento cristão. São Paulo: Cultura Cristã, 2007.

PIPER, J. O Legado da Alegria Soberana: A graça triunfante de Deus na vida de Agostinho, Lutero e Calvino. São Paulo: Shedd Publicações, 2005.

VAN HALSEMA, T. B. João Calvino Era Assim. São Paulo: Editôra (sic) Vida Evangélica, 1968.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

JESUS NOS TORNOU FORA DA LEI?

Uma análise, à luz de Mateus 5:17-48, concernente ao ensino de Jesus sobre a Lei.

MESQUITA NETO, Nelson Ávila (E. T. C. S.)

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho se propõe a analisar o modo como Jesus abordou a lei do Antigo Testamento ao longo de sua vida e ministério, tendo por objetivo esclarecer se, de fato, algo da lei ainda se aplica aos cristãos de nossos dias ou se toda a lei foi cabalmente abolida em Cristo, de modo que todas as suas ordenanças perderam completamente o caráter de obrigatoriedade.

Iniciaremos apresentando a problemática em torno da terminologia e as diversas discussões que se levantam ao tentarmos conceituar a palavra lei no Novo Testamento. Neste primeiro momento tentaremos transitar, sem muita profundidade, ao longo de algumas das principais vertentes teológicas que versam a este respeito.

Em seguida, tendo como fundamentação o texto de Mateus 5:17-48, avaliaremos a negativa de Jesus (“Não vim abolir a lei...” – Mat 5:17), assim como o significado de “cumprimento” em Seu discurso (Mat 5:17-20) e, por fim, Sua relação para com os escribas, fariseus e a própria lei (Mat 5:21-48), buscando responder a pergunta que se apresenta no enunciado: “Cristo nos tornou fora da Lei?”.

2 O QUE SE ENTENDE POR LEI?

A primeira necessidade que se nos apresenta ao abordarmos a questão do relacionamento entre Cristo e a Lei, é definir o que se pretende expressar por “Lei”, já que esta pode adquirir diferentes significados dependendo da escola teológica que a estiver conceituando.

Alguns a entendem como absolutamente una e inseparável; outros a vêem como dividida em três aspectos (Civil, Cerimonial e Moral). Existem ainda momentos em que ela é utilizada num sentido teológico, enquanto noutros o sentido é evidentemente histórico. Não podemos esquecer também que, por vezes, esta ganha a forma de uma figura de linguagem (metonímia), com o objetivo de referir-se ao todo do Pentateuco ou mesmo ao próprio Antigo Testamento.

Este ponto é importante, porque o modo como se encara a “lei” traz conseqüências determinantes na hermenêutica e práxis do intérprete. Douglas J. Moo (1983, p.73), citando Gerhard Ebeling, ressalta a importância, e influência, de uma definição de Lei sobre correntes teológicas, ao observar que “na teologia dos Reformadores”, por exemplo, “todo o problema se concentra tanto sobre o conceito de lei que o todo da teologia (no sentido da estrutura essencial da teologia) se mantém de pé ou cai com ele”[1]. Para ele, foi justamente o conceito de Lei dos Reformadores que os levaram a equiparar circuncisão a batismo.

Ainda sobre a questão da discussão quanto ao uso do termo “Lei”, Moo aponta para sua contemporaneidade ao relembrar-nos as aproximações feitas, entre os meados e o fim do século passado (séc. XX), pelo proeminente teólogo neo-ortodoxo Karl Barth, em seu ensaio intitulado Gospel and Law, e o livro de Daniel Fuller, Gospel and Law: Contrast or Continuum?. Na proposta de Barth o termo “Lei” deve ser entendido como o conteúdo do evangelho, enquanto que para Fuller a Lei é posta ao lado do Evangelho, como “[...] partes de um continuum, ao invés de itens contrastantes. [...] o livro de Fuller ilustra como as duas formas da antítese lei/evangelho continuam a ser tratadas como inter-relacionadas” (1983, p. 74)[2].

Em seu livro, “Lei e Graça”, Mauro F. Meister acertadamente aponta para o fato de que:

A revelação da lei de Deus, como expressão objetiva da sua vontade, [...] foi revelada ao longo do tempo. Dependendo das circunstâncias e da ocasião em que foi dada, possui diferentes aspectos, qualidades ou áreas sobre as quais legisla. Assim, é importante observar o contexto em que cada lei é dada, a quem é dada e qual o seu objetivo manifesto. Só assim poderemos saber a que estamos nos referindo quando falamos de lei (2003, p. 41).

Meister, em consonância com a teologia reformada expressa na Confissão de Fé de Westminster, propõe uma compreensão da “Teologia do Pacto” como chave hermenêutica para o entendimento da Lei no Novo Testamento. Por Teologia do Pacto, é suficiente, por hora, compreendermos resumidamente a distinção traçada entre (1) “pacto das obras” – que é o pacto operante antes da queda e do pecado, o qual “[...] dependia da sua [de Adão e Eva] obediência à lei dada por Deus de forma direta em Gênesis 2.17” (2003, p. 30), sobrevindo em conseqüência da desobediência a esta, a maldição do pacto das obras, a saber: a morte; e (2) o “pacto da graça” – expresso como:

[...] a manifestação graciosa e misericordiosa de Deus, aplicando a maldição do pacto de obras na pessoa de seu Filho, Jesus Cristo, fazendo com que parte da sua criação, primeiramente representada em Adão, e agora representada por Cristo, pudesse ser redimida (2003, p. 31).

Esta é justamente aquela visão de Lei que a apresenta como estando dividida em três aspectos: 1) Lei Civil ou Judicial; 2) Lei Religiosa ou Cerimonial e 3) Lei Moral; e devido à encarnação, morte e ressurreição do Cristo, instaurando o “pacto da graça” de Deus e revelando plenamente o significado daqueles tipos e sombras na Lei Cerimonial que apontavam para Sua vinda, bem como fazendo expirar o caráter civil que vigorara no Estado Teocrático de Israel até a inauguração de Seu Reino, nos deixou sobre a lei moral de Deus (isto é, todas as injunções que têm a natureza e o caráter de Deus como a base de sua existência), a qual não deve ser cumprida como um meio para se alcançar a salvação, mas somente numa atitude de amor e deleite em Deus, em virtude de termos recebido tão grande salvação, buscando viver fielmente de acordo com a expressa vontade dEle para Sua própria glória. Leonard T. Van Horn (2009, p. 30) expressa essa questão muito bem quando declara:

É verdade que nossa entrada no céu não acontece por méritos nossos e sim pela graça de Deus. Mas é igualmente verdade que a pessoa nascida de novo pelo Espírito de Deus será uma pessoa que ama a Palavra de Deus e busca, pela ajuda de Deus, seguir os mandamentos dele.

Moo (apud ZASPEL, 1997, p. 144), ao contrário de Meister, argumenta:

Os judeus nos dias de Jesus e Paulo certamente não dividiram a lei em categorias; pelo contrário, havia uma forte insistência de que a lei era uma unidade e não poderia ser obedecida em partes. Sendo este o caso, requereríamos fortes evidências de dentro do Novo Testamento para pensarmos que a palavra “lei” em certos textos possa ser aplicada a uma parte apenas da lei.[3]

Ele afirmou, inclusive, que “nomos para Paulo é basicamente um todo único e indivisível [...] A lógica do argumento de Paulo proíbe uma distinção nítida entre lei moral e lei cerimonial” (1983, p. 84)[4].

Entendemos ser a lei, de fato, uma “unidade”, no sentido de que toda a lei, em qualquer de suas proposições (como um todo), revela a expressa vontade de Deus para o Seu povo, e a transgressão desta (em qualquer de suas partes) acarreta sempre em separação com Ele. Contudo, não perceber diversidade na lei é fechar os olhos para os diferentes propósitos nela apresentados. Os Dez Mandamentos, por exemplo, apresentam a disposição que o povo de Deus deve ter para com Ele e para com seu próximo, e assim, reflete um propósito diferente daquele estabelecido nas cerimônias prescritas na lei, que visavam claramente, segundo nos é dito no N. T., prefigurar, como que por meio de “sombras”, símbolos e tipos, a obra e o ministério que seria desempenhado pelo Messias prometido.

Embora Moo afirme que o apóstolo Paulo opere com este conceito de Lei una e indivisível, isto se torna um grande problema quando lemos em Romanos que, mesmo se utilizando muitas vezes da palavra nomos (Lei) como alusão a lei mosaica (Rom 2: 22-23, 7: 7 etc., onde cita mandamentos expressos no Decálogo entregue por Deus a Moisés), este também se refere aos Salmos 5:9; 10:7; 14:1-3; 36:1; 53:1-3 e 140:3, bem como de Isaías 59:7,8, como sendo igualmente lei (nomos) em Rom 3:10-19, apresentando um conceito de lei que se estende para além da lei mosaica. Ele concebe ainda a existência de uma “lei das obras” (έrgwn) e uma “lei (nómou pίstews) da fé” (e para os que afirmam não haverem distinções na lei, Paulo pergunta “Por que lei?” ou “Por qual lei?” – δiά poίon nómou - (Rom 3:27), ao que também nós questionamos com uma certa dose de ironia: há mais de uma lei?), e apresenta a “justificação” como sendo proveniente da fé, “independentemente das obras da lei” (Rom 3:28), não esquecendo de acrescentar mais adiante que a lei não é anulada pela fé, mas antes, confirmada por esta (Rom 3:31), demonstrando que isto não é uma novidade apresentada por Jesus ao dar-se início a Nova Aliança, mas, por meio do exemplo de homens como Abraão e Davi, busca provar como a justificação pela graça mediante a fé sempre foi o meio pelo qual Deus salvou os Seus (o que é consistente com o ensino de Hebreus 11). No capítulo 7, inclusive, Paulo faz uma grande exposição de como a lei de Deus revelou as facetas do pecado, e este mesmo pecado, em virtude de sua malignidade, acabou por distorcer a santa lei, afim de que esta, que fora dada para a vida, se tornasse em morte. Paulo indaga: “Que diremos, pois? É a lei pecado?” E ele mesmo responde: “De modo nenhum!” (Rom 7:7). O apóstolo afirma que a lei do Senhor “é santa; e o mandamento, santo, e justo, e bom” (Rom 7:12). Diz também que esta lei é “espiritual” (Rom 7:14), de sorte que “no tocante ao homem interior” ele tem “prazer na lei de Deus” (Rom 7:22) e dá “Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor”, que o livrou do “corpo desta morte”, de maneira que ele, de si mesmo, com a mente, é “escravo da lei de Deus” (nómw θeoύ), embora na carne, em virtude do pecado, o seja da “lei do pecado” (Rom 7:24-25). Além desta “lei (nómw amartίaς) do pecado” (Rom 7: 23), Paulo ainda trata de uma “lei (nómou tou anδróς) conjugal” (Rom 7: 2), o que parece expressar distinções demais para uma lei tão indivisível.

As próprias punições previstas na lei do A. T. eram diferenciadas de acordo com a transgressão cometida; e isto revela um pouco desta diversidade também, pois, conquanto cada transgressão fosse absolutamente abominável aos olhos do Senhor, o nível de severidade aplicado na punição não era o mesmo. É como o Dr. Don Kistler (1999, p. 09) coloca ao citar Jonathan Edwards:

Todo pecado é de proporção infinita, e é mais ou menos hediondo, dependendo da honra da pessoa ofendida. Desde que Deus é infinitamente santo, o pecado é infinitamente mal.” Isto é o porquê de não haver tal coisa como um pecadinho, pois o menor pecado é um ato de traição cósmica cometido contra um Deus infinitamente santo.[5]

Se encararmos a Lei de uma maneira estrita, como uma unidade somente, a punição deveria ser a mesma para cada transgressão desta, e nem mesmo existiria algo como diferenciação entre transgressões. Talvez por esta razão o próprio Dr. Moo, como bem nos faz lembrar Walter C. Kaiser Jr. (apud GUNDRY, 2003, p. 203), um ano após ter escrito “Law,” “Works of the Law,” and Legalism in Paul, comentou que:

Embora seja verdadeiro que uma distinção teórica [entre lei moral e lei cerimonial] [...] não era feita, surge, por exemplo, em Filon e Qumrã, uma diferenciação prática desse tipo. A apropriação que Jesus faz da ênfase profética sobre a necessidade de uma obediência interior, o seu comentário sobre “os mandamentos mais importantes”, a elevação do mandamento do amor [...], tudo sugere que ele tenha operado com esse tipo de distinção [...] Não é ilegítimo encontrar a semente desse tipo de distinção em textos como Marcos 7.1-23.

Tendo em vista que mesmo Moo, defensor do conceito de lei como unidade, atesta a grande probabilidade de Jesus operar com uma espécie de distinção dentro da lei mosaica em mente, e conscientes de haverem diferentes aspectos, qualidades ou áreas sobre as quais esta legisla, como dantes mencionado, abordaremos a lei do ponto de vista historicamente aceito pela tradição reformada; como um todo que abrange áreas diferentes, tais como: civil, religiosa e moral.

Por fim, gostaríamos de declarar ainda, nosso acordo com Kaiser no que diz respeito à aplicabilidade e permanência de certos aspectos da lei das Escrituras do Antigo no Novo Testamento. Ele nos aconselha a observarmos a razão pela qual ordens, costumes ou exemplos históricos aparecem no texto bíblico, e, assim, ponderarmos: “Se a razão para a prática ou ordem que está sendo questionada tem como base a natureza de Deus, então essa prática ou ordem é relevante para todos e em todas as épocas” (KAISER E SILVA, 2009, p.179). Entendendo que muitos aspectos da lei mosaica estavam intrinsecamente fundamentados na natureza e caráter de Deus (o que chamamos de “Lei Moral”), defenderemos sua permanência não só no Novo Testamento e ensino de Jesus, mas na própria sociedade de nossos dias.

3 “NÃO PENSEM QUE VIM ABOLIR A LEI E OS PROFETAS...” (MAT. 5:17).

Cristo aqui estabelece Sua clara relação para com a Lei: Cumprimento! Ou nas palavras de R. V. G. Tasker (1980, p. 51): “Nesta seção Jesus insiste em que em seu ensino ele não está, de modo nenhum, contradizendo a lei mosaica, embora esteja em oposição ao tipo legalista de religião que os escribas haviam construído sobre ela”.

George Eldon Ladd (2003, p. 168) nos chama a atenção para o comportamento de Jesus em relação à lei de Moisés durante Sua vida e ministério:

Ele [Jesus] considerou o Antigo Testamento como a Palavra inspirada de Deus, e a Lei como a regra de vida que fora divinamente outorgada aos homens. Ele próprio obedeceu às injunções da Lei (MT. 17:27; 23:23; Mc 14:12) e nunca criticou o Antigo Testamento, como se este não fosse a Palavra de Deus. Na verdade, sua missão efetiva foi o cumprimento do verdadeiro propósito da Lei (Mt. 5:17).

Todavia, na opinião de Geisler e Howe (1999, p. 338) a questão não parece tão simples, visto que para eles, em certa ocasião “[...] Jesus aprovou seus discípulos quando eles quebraram a lei dos judeus quanto ao trabalho no sábado (Mc. 2:24), e o próprio Jesus aparentemente aboliu a lei cerimonial ao considerar puros todos os alimentos (Mc 7:19)”.

É óbvio que o Senhor Jesus jamais quebrou lei alguma, e, caso ele tivesse ensinado ou aprovado tal prática com relação à lei mosaica, incorreria em imensa contradição, visto que Seu pronunciamento no Sermão do Monte fora: “Qualquer, pois, que violar um destes mandamentos, por menor que seja, e assim ensinar aos homens, será chamado o menor no reino dos céus” (Mt. 5:19). Os próprios autores, Geisler e Howe, parecem tentar resolver o problema reafirmando aquilo que Ladd dissera anteriormente, ou seja, que “Durante sua vida terrena, Jesus sempre guardou pessoalmente a Lei de Moisés, inclusive oferecendo sacrifícios aos sacerdotes judeus (Mt 8:4), participando das festas judias (Jo 7:10) e comendo o cordeiro pascal (Mt 26:19)”; e acrescentam que, ao contrário da Lei, o que Jesus violava, “De vez em quando”, eram “[...] as tradições falsas dos fariseus, que tinham sido levantadas em torno da Lei (cf. Mt 5:43-44), repreendendo-os: ‘Invalidastes a palavra de Deus, por causa da vossa tradição’ (Mt 15:6) (1999, p. 338)”. Eles procuram harmonizar o ensino de Cristo aqui (Mt. 7:17:20), com os textos supracitados, de Mc. 2:24 (quanto ao sábado) e Mc 7:19 (quanto a cessão da lei que envolvia o consumo de alimentos), colocando-o em termos de:

[...] aspectos cerimoniais e tipológicos da Lei de Moisés [que] foram de forma clara abolidos quando Jesus, o nosso cordeiro pascal (1 Co 5:7), cumpriu os tipos e predições da Lei quanto à sua primeira vinda (cf. Hb 7-10). Nesse sentido, Jesus claramente aboliu os aspectos cerimoniais e tipológicos da Lei, não destruindo-a, mas cumprindo-a (1999, p. 338).

A partir daqui muitos inferem que, se Cristo, ao cumprir tais aspectos “cerimoniais e tipológicos”, os aboliu (desde que estes se tornaram desnecessários), o que impede, então, de afirmar-se que ao cumprir “a lei e os Profetas” Ele também fez o mesmo para com esta, como um todo? O caso é que se generalizarmos deste modo a questão, as palavras de Jesus perderão completamente qualquer sentido de cognocibilidade, pois poderíamos assegurar categoricamente, se for este o caso, que quando Ele afirmou “não vim abolir, mas cumprir” (Mt. 5:17), Sua intenção era declarar: “Não vim abolir, mas abolir!”, e isto não faz sentido. Alguns ainda o colocam desta maneira: “Não vim abolir, sem antes cumprir”, mas não é isto o que o texto diz, e tal abordagem descarta completamente a ênfase da negativa de Jesus: “NÃO vim abolir”. Por tanto, após termos analisado brevemente esta relação entre Cristo e a lei, faz-se necessário compreendermos o significado da expressão “cumprimento” em Jesus para respondermos se existe ainda algum aspecto sobre o qual o cristão permanece debaixo da Lei, ou se literalmente Cristo nos tornou “fora da lei”.

4 EM QUE SENTIDO CRISTO VEIO CUMPRIR A LEI? (MAT 5:17-20)

A idéia de que Cristo veio cumprir a Lei e os Profetas parece ser tão chocante para alguns que muitos chegam a dar asas à imaginação em busca de uma resposta que corresponda melhor as suas teorias, mas isso parece esbarrar num grave problema hermenêutico, visto que o intérprete acaba se recusando a aceitar a clara proposta do autor e busca em fontes outras, que não o texto, a base para suas considerações, como o fez W. C. Allen (apud STOTT, 2008, p. 72) que, não encontrando uma maneira de adequar Mateus 5:18, 19 a sua interpretação, finda declarando, nos moldes do método histórico-crítico, que tais versículos “não pertenciam originalmente ao sermão, mas que foram ali colocados pelo editor”, pois sob seu ponto de vista “a atitude para com a lei aqui descrita é inconsistente com o teor geral do sermão”. Também bebendo desta fonte hermenêutica, Günther Bornkamm (2005, p. 167), discípulo de Bultmann, argumenta que o texto de Mt 5:17-19 deve ter surgido em uma situação de conflito da igreja primitiva, entre aqueles que possuíam “[...] uma tendência rigorosa quanto à lei” e aqueles que “proclamavam como missão de Jesus a anulação da vontade de Deus atestada na Escritura e a instauração de uma nova era isenta da lei”. Para Bornkamm, esta circunstância teria sido a responsável por colocar tais palavras “[...] na boca de Jesus”. Ele imagina que “o dito seja proveniente da comunidade palestinense que seguia rigorosamente a lei”.

John Stott (2008, p. 72) responde bem a estas críticas ao retrucar que “este é um julgamento inteiramente subjetivo e, além de tudo, não resolve o dilema. Tudo o que consegue fazer é remover a suposta discrepância dos ensinamentos de Jesus”, aplicando-a “[...] ao primeiro evangelista ou, através dele, a alguma primitiva comunidade cristã”. A abordagem de Allen, levando-se em conta as devidas divergências doutrinárias entre ambas as abordagens, parece fazer eco ao método adotado pelo “[..] famoso herege do segundo século, Marcion, que reescreveu o Novo Testamento, eliminando as referências que este faz ao Velho, [e] naturalmente apagou esta passagem” (STOTT, 2008, p. 65-66). Stott (2008, p. 66) escreve que alguns dos discípulos de Marcion “[...] foram mais longe. Atreveram-se até a inverter o seu significado, mudando os verbos de modo que a sentença, então, passasse a dizer o seguinte: ‘Eu vim, não para cumprir a lei e os profetas, mas para aboli-los!’”. Isto nos dá a impressão de que, com base em nossos pressupostos, podemos abandonar ou retirar as palavras de qualquer texto desde que não sejam condizentes com a nossa interpretação pré-concebida, desconsiderando completamente o papel do texto em si.

Contrariando as abordagens acima, que visam eliminar a palavra “cumprir” ou o sentido desta, Vincent Cheung (2004, p. 52)[6] declara ser provável que Jesus tivesse três sentidos em mente ao fazer uso da mesma. Para Cheung, em primeiro lugar, Jesus queria dizer que “veio para expor a lei de modo completo”, em oposição “[...] as tradições e interpretações errôneas humanas, de forma que as exigências de Deus possam ser verdadeiramente conhecidas, e que o povo de Deus possa aprender o significado pleno e proposto pela lei e obedecer a isso”[7]. Em segundo lugar, ele acredita que o Senhor Jesus queria dizer que “veio para cumprir plenamente os verdadeiros requerimentos da lei”, ou seja, “ele veio como alguém nascido sob a lei para lhe obedecer completamente, de sorte que pudesse ser um redentor perfeito para o seu povo”[8]. E em último lugar, ele afirma que as palavras de Jesus queriam passar a mensagem de que ele “[...] veio para consumar plenamente as profecias na lei com respeito ao Messias. Isto é, tudo o que a lei diz sobre o Cristo seria cumprido nesse”[9].

Alguns intérpretes, mesmo que concordando que Jesus viera cumprir os três sentidos apresentados por Cheung, afirmam que, ao se valer da palavra “cumprir”, Cristo tinha em mente apenas o último sentido, e o ponto de partida para esta conclusão vem das palavras mencionadas no próximo versículo (v. 18) as quais afirmam que “nada na lei desaparecerá até que tudo ‘se cumpra’, o que parece indicar que por ‘cumprir’ ele quis dizer que o que diz a lei, por fim, suceder-se-á na pessoa de Cristo” (CHEUNG, 2004, p. 52)[10].

Cheung (2004, p. 52) argumenta ainda que “conquanto o versículo 18 decerto declare o terceiro sentido de cumprimento, não exclui automaticamente os outros dois”, visto que o segundo sentido está englobado no terceiro, ou seja, “[...] ao afirmar que o que a lei diz respeitante ao Messias seria cumprido em Jesus (o terceiro sentido), afirmamos automaticamente que Jesus levou a cabo todos os requerimentos da lei (o segundo sentido)”[11]. Este faz muito bem ao relembrar o texto de Hebreus 10.7 para sustentar esta posição.

Sobre o primeiro sentido, ele destaca os versículos 19 e 20 de Mateus 5, onde se lê que será maior no reino dos céus aquele que “praticar e ensinar” os mandamentos da lei de Deus, e refere-se à justiça que excede a dos escribas e fariseus. Logo após, Cristo parece colocar este princípio em prática ao fazer uma longa exposição da lei contrapondo os ensinos e práticas falsos “[...] dos fariseus e líderes judeus, corrigindo-os” (CHEUNG, 2004, pp. 52, 53)[12].

Moisés Silva (KAISER E SILVA, 2009, p. 108) nos faz lembrar que “a palavra profecia não deve simplesmente ser identificada como predição”, e acrescenta que “particularmente no evangelho de Mateus, a noção do cumprimento profético tem uma extensão bastante ampla, que inclui não apenas a realização de uma predição, mas também idéias como a concessão de uma promessa e o concluir dos planos de Deus”. Embora este comentário seja de grande valia ao interpretarmos Mateus, não se contrapõe a idéia exposta até aqui e, não obstante nos leve a ponderar mais criteriosamente algumas passagens, não nos dá qualquer margem para compreendermos “cumprimento” como sinônimo de “abolição”. Isto é mudar completamente o sentido do texto. A “concessão de uma promessa” ou “o concluir dos planos de Deus” está em plena harmonia com um ou mais dos três sentidos supra-apresentados.

5 CRISTO, OS ESCRIBAS, OS FARISEUS E A LEI (MAT 5:21-48)

Vincent Cheung (2004, p. 52) expõe o fato de que o próprio Jesus, durante Seu ministério, deparou-se “[...] com alguns mal-entendidos”, e afirma que isso não se deu em decorrência de Seu ensino ser contrário ao Antigo Testamento, mas “[...] o oposto é que era verdadeiro”. Para Cheung:

Um problema era que as autoridades religiosas judaicas tinham adicionado tantas tradições humanas à lei de Deus que, quando Jesus se opunha a tais tradições, desobedecendo-as, o povo entendia-o incorretamente, como se opondo e desobedecendo a própria lei.[13]

Bornkamm (2005, p.163) sustenta a opinião contrária de que “Jesus apresenta-se como um escriba”. Ele tenta desenvolver a idéia de que Cristo não havia se “[...] retirado definitivamente da comunhão com os escribas e fariseus”, alegando que Ele, repetidamente, encontrava-se “[...] hospedado em suas casas [...] esforçando-se em diálogos para obter sua concordância”. Todavia, isto é completamente inconsistente com o testemunho do Evangelho. Cristo, por diversas vezes, não apenas se distingue dos mestres da lei e fariseus, mas dirigi-lhes palavras extremamente ofensivas (como, por exemplo, “raça de víboras!” – Mat 12:34; 23:33), pondo-os à parte do “reino dos céus” (haja vista a necessidade de uma justiça superior a daqueles – Mat 5:20) e chegando mesmo a chamar-lhes de filhos do Diabo (João 8:44), o que dificilmente traria para Si a concordância que Bornkamm julgava ser almejada por Ele. A alegação de que Jesus “[...] jamais os censurou por não levarem a lei ao pé da letra” (BORNKAMM, 2005, p. 167) é inteiramente descabida, pois, a grande crítica levantada em torno deles era a de que transgrediam o mandamento de Deus em virtude de suas próprias tradições (Mat 15:3,16; Mar 7:8,9,13).

Moisés Silva (KAISER E SILVA, p. 113), esclarece que “uma característica básica do pensamento rabínico era a ênfase nas duas Torás: a lei escrita (a Bíblia hebraica, especialmente os cinco livros de Moisés) e a lei oral (as tradições dos anciãos)”. Silva ainda acresce o fato de que, em certa medida, a lei oral poderia ser encarada “[...] como uma interpretação e uma aplicação da lei escrita”; todavia, o caso é que “[...] muito dela consistia de debates que tratavam de questões técnicas legais, o que levou ao desenvolvimento de novas regulamentações”, muitas das quais, “Ironicamente, [...] tiveram o efeito de embotar a força dos mandamentos bíblicos”. Portanto, como Stott bem ressalta, fazendo referência aos versículos posteriores, onde Jesus traz o contraste entre o “ouvistes que foi dito aos antigos (vs. 21, 33), ou ouvistes que foi dito (vs. 27, 38, 43); ou, mais resumidamente ainda, também foi dito (vs. 31)” (STOTT, 2008, pp. 70, 71) e sua própria autoridade (“Eu, porém, vos digo”), “[...] fica evidente que as antíteses não colocam Cristo e Moisés em oposição um ao outro, como Bornkamm parece defender numa nota de rodapé (2005, p. 167), nem o Velho Testamento oposto ao Novo, ou o Evangelho à lei” (STOTT, 2008, pp. 72, 73), mesmo porque “As palavras comuns para estas fórmulas são foi dito, que representam o verbo grego errethē”, o qual “não era a palavra que Jesus usava quando citava as Escrituras” (STOTT, 2008, p. 71), diferindo tanto no verbo quanto no tempo, valendo-se de gregraptai (perfeito, “está escrito”) ao contrário de errethē (aoristo, “foi dito”), ficando claro, assim, que “a verdadeira interpretação que Cristo apresentou da lei é que se opõe às falsas interpretações dos escribas, e, conseqüentemente, a justiça cristã é que se opõe à dos fariseus, como o versículo 19 preconiza” (STOTT, 2008, p. 73). Deste modo, torna-se absolutamente impossível qualquer tentativa de torcer as palavras de Jesus afim de que elas digam que Seu propósito era abolir a lei.

É verdade que, como escreveu Stott (2008, p. 70):

À primeira vista, em cada exemplo o que Jesus cita parece ter vindo da lei mosaica. Todos os sei exemplos, ou consistem de algum eco, ou incluem algum eco da lei. Por exemplo: Não matarás (v. 21); Não adulterarás (v. 27), Aquele que repudiar sua mulher, dê-lhe carta de divórcio (v. 31).

Contudo, em lugar algum da lei mosaica encontraremos o mandamento para odiar os nossos inimigos (v. 43), embora o “amarás o teu próximo” tenha sido retirado de Levítico 19:18. O próprio Stott (2008, pp.71, 72) nos conclama a analisarmos a afirmação de Jesus, a qual apresenta, de “[...] maneira bastante inequívoca, [...] sua própria atitude para com a lei e qual deveria ser a dos seus discípulos”, sendo o “cumprimento” em seu caso e “obediência” no caso dos discípulos. Ele ainda nos interroga, ao fazer-nos recordar as palavras de Cristo a respeito de que “nem um til ou um i passaria”, mas pelo contrário, “tudo tinha de se cumprir”, e pergunta: “Será que poderíamos, com seriedade, supor que Jesus se contradisse? Que ele praticasse o que tinha acabado de declarar categoricamente que não viera fazer, e que eles não deveriam fazer?”. Para Stott, o grande dilema era este: “se nas antíteses Jesus contradizia Moisés, estava com isso contradizendo-se a si mesmo”.

O grande pregador D. Martyn Lloyd-Jones (2008, p. 197) também sustentava a idéia de que “nos versículos 21 a 48 nosso Senhor ocupa-se, primariamente, em oferecer-nos a verdadeira exposição da lei”. Ele compara “A condição em que os judeus viviam, nos tempos de nosso Senhor”, com “[...] à do povo inglês, antes da Reforma Protestante” (2008, p. 198). Um período em que não havia qualquer tradução na língua inglesa das Sagradas Escrituras, “[...] mas tão somente eram lidas, domingo após domingo, em latim, a uma população que desconhecia o latim. E o resultado disso é que o povo ficava inteiramente dependente dos sacerdotes católicos quanto ao conhecimento da Bíblia”. Deste modo, um povo que não era capaz de ler as Escrituras para si, nem mesmo “[...] de averiguar e confirmar o que estavam ouvindo dos vários púlpitos nos domingos ou nos dias úteis da semana”, acabava obrigado a aceitar qualquer das supostas exposições feitas por aqueles clérigos romanos.

Para Lloyd-Jones, ao colocar a Bíblia na mão do povo, o que a Reforma Protestante fez foi capacitá-los “[...] a lerem individualmente as Escrituras”, o que os levou a perceber “[...] quão falso era o ensino que se fazia passar por ensino evangélico, que lhes havia sido impingido por tanto tempo”.

Tal exemplo nos serve de boa ilustração, em virtude dos filhos de Israel falarem naquela época, na Palestina, o aramaico e não mais o hebraico, devido terem se esquecido daquele idioma durante o período em que passaram no cativeiro babilônico, o que acabou por impossibilitá-los de ler a Lei de Moisés tal qual estava escrita e tornou-os totalmente reféns “[...] do ensino dos fariseus e escribas, no tocante a qualquer conhecimento que porventura tivessem da lei” (LLOYD-JONES, 2008, p. 198).

Parafraseando as citações de Jesus quanto ao “Ouvistes...”, Lloyd-Jones (2008, p. 198) declara: “É isto que vocês têm ouvido; é isto que tem sido dito a vocês; essa é a forma de pregação que tem sido exposta diante de vocês nas sinagogas, quando vocês buscam ali a instrução bíblica”, e conclui “[...] o resultado disso era que, aquilo que ouviam da lei nem ao menos era a lei, e, sim, apenas uma imitação da lei, apresentada pelos escribas e fariseus”, dada a grande quantidade de acréscimos derivados de suas próprias tradições que acabavam por se confundirem com a lei em si.

Portanto, Lloyd-Jones (2008, p.202) conclui que “[...] o que importa é o espírito da lei, antes de qualquer outra coisa, e não somente a letra da lei”, ou, como Ladd (2008, p. 87) expôs, “A justiça que o Reino de Deus exige não trata só de atos exteriores de pecado. Ela busca o motivo por trás do ato, da obra, ela busca o coração e lida com o que o homem é em si mesmo diante de Deus”. Lloyd-Jones (2008, p.202) ainda afirma que “não se esperava que a lei viesse a ser algo mecânico, mas, sim, vivificante”, e toda a dificuldade, “[...] no caso dos fariseus e dos escribas, era que eles se concentravam apenas em torno da letra, e excluíam totalmente o espírito da lei”. É o que ele chama de “[...] relação entre forma e conteúdo”, atestando que “o espírito sempre terá de concretizar-se sob alguma forma”.

Se Cristo veio tornar mais rígido ou apresentar o real sentido (ou espírito) da lei é matéria que podemos abordar em outro momento. O fato é que qualquer que seja a conclusão a que chegarmos, a lei permanece, em oposição ao falso ensino farisaico e suas artimanhas para “afrouxarem” ou tornarem mais “praticáveis” a santa lei de Deus. Jesus, não a aboliu, muito pelo contrário, ele, “[...] claramente, intensificou a força desses mandamentos, diretamente contra a tendência rabínica de relaxá-los” (KAISER E SILVA, 2009, p. 113).

Segundo Stott (2008, p. 73) a lei consiste em mandamentos (preceitos ou proibições) e permissões. Dentro das seis antíteses que encontramos nos versículos de 21 a 48, quatro se encaixam melhor na categoria de mandamentos e as outras duas na de permissões, as quais “Não pertencem à mesma categoria de ordem moral das outras quatro”.

Ao contrário dos fariseus e escribas, os quais, visando tornar a obediência mais fácil de praticar, buscavam “[...] restringir os mandamentos e esticar as permissões da lei”, tornando “[...] as exigências da lei menos exigentes e as permissões da lei mais permissivas”, o Senhor Jesus insistiu para que “[...] fossem aceitas todas as implicações dos mandamentos de Deus sem a imposição de quaisquer limites artificiais, enquanto que os limites que Deus estabelecera às suas permissões também deveriam ser aceitos e não arbitrariamente ampliados” (STOTT, 2008, pp. 73, 74). Assim, nossa premissa de que Cristo viera cumprir a lei e não aboli-la permanece válida. Por conseguinte, afirmamos com Cheung (2004, p. 53) que “se há alguma mudança quando se fala da relação entre o povo de Deus e a lei desse, ela deve ser entendida no contexto de seu cumprimento, e não anulação”.[14]

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chegamos por fim ao ponto em que devemos interrogar mais uma vez se, de fato, “Cristo nos tornou fora da lei?”, e, a este respeito, buscarmos apresentar uma resposta mais objetiva. Portanto, em certa medida, podemos responder com um altissonante SIM, Cristo nos tornou “fora da lei”. Visto que todas aquelas prescrições quanto a ritos e cerimônias (bem como algumas das regulamentações estabelecidas para o Estado Teocrático de Israel[15]) encontraram seu fim na vida e obra de Cristo. “Por exemplo, não temos nenhum sacrifício de animais na igreja, não porque não haja qualquer necessidade de um, mas porque, de uma vez por todas, é Cristo o nosso sacrifício todo suficiente” (CHEUNG, 2004, p. 54)[16].

Calvino (2006, 246) aponta para o óbvio sentido espiritual daquelas cerimônias e indaga: “Ora, que coisa mais e mais frívola que os homens ofereçam o fétido odor da gordura de animais a fim de reconciliarem-se com Deus, ou refugiem-se em uma aspersão de água ou de sangue para lavar a impureza da alma?”[17]. E ainda acrescenta que esta verdade pode ser apreendida do próprio caráter de Deus “[...] pois, sendo Ele espírito, não pode dar-se por satisfeito com um culto e serviço que não seja espiritual”[18]. Para Calvino, “Deus não dispôs dos sacrifícios para que os que o serviam se ocupassem em exercícios terrenos, mas, antes, para que mais alto lhes elevasse o entendimento”[19] e, no fim, encontrassem Aquele para quem o sacrifício apontava, sendo justificados pela graça, mediante a fé na esperança do Messias prometido.

Todavia, quanto à lei moral que tem origem na própria essência do Ser de Deus, da qual Ele mesmo espera que sejamos imitadores, retrucamos com um veemente NÃO, Cristo não nos tornou fora da lei.

Negamos qualquer tentativa de se postular que Cristo nos livrou desta, pois, ela nos foi dada como mandamento eterno e demonstração de amor. Poderíamos perguntar: “No que consiste o amor?” E o apóstolo João nos responderia prontamente: “Nisto consiste o amor a Deus: em obedecer aos seus mandamentos” (1 João 5:3). Semelhantemente, o apóstolo Paulo, ao resumir os Dez Mandamentos no mandamento do amor (Rom 13:9), não estava apresentando um novo mandamento totalmente diferente, “Pois estes mandamentos: ‘Não adulterarás’, ‘Não matarás’, ‘Não furtarás’, ‘Não cobiçarás’, e qualquer outro mandamento, todos se resumem neste preceito: ‘Ame o seu próximo como a si mesmo’” (MACARTHUR apud CHEUNG, 2004, p. 55)[20], de forma que “isso significa que o próprio amor é definido por esses vários mandamentos, e que não é definido sem eles” (CHEUNG, 2004, p. 55)[21]. O próprio Paulo conclui em Romanos 13:10: “Portanto, o amor é o cumprimento da Lei”.

Estamos cientes de que alguns poderão taxar esta perspectiva de legalista, porém tal percepção procede de uma falsa definição do que vem a ser legalismo. Tais pessoas interpretarão as atitudes legalistas dos escribas e fariseus como estando rigidamente aferradas a lei, contudo esperamos que esta má compreensão tenha sido desfeita nas passagens supracitadas em que, longe de apresentá-los como aqueles que cumpriam rigorosamente a lei de Deus, demonstramos o modo como eles a relaxavam, invalidando a lei de Deus por suas próprias tradições (Mt 15:6).

Encerramos, portanto, afirmando que permanecemos sob a lei moral de Deus, a qual buscamos cumprir não para a nossa própria salvação, mas em virtude de já termos sido salvos e libertos da maldição da lei, como expressão de amor ao nosso Deus que no-la deu para preservar-nos, mostrando-nos por meio de “[...] sentenças facilmente compreensíveis” o modo como distinguir entre o que vem a ser “pecado” (“porque o pecado é a transgressão da lei” – 1 João 3:4), bem como “boas obras” (em oposição as más obras) e o real significado de justiça diante de Deus (CLARK, 1979, p. 2)[22].

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ZASPEL, F. G. Divine Law: A new covenant perspective. Reformation & Revival, Carol Stream, Illinois, v. 6, n. 3, Verão, 1997, pp. 144-169 (tradução minha).


[1] “in the theology of the Reformers the problems all concentrate themselves so much on the concept of law that the whole of theology (in the sense of the essential structure of theology) stands or falls with it.”

[2] “[…] parts of one continuum, rather than contrasting items […] Fuller’s book illustrates how the two forms of the law/gospel antithesis continue to be treated as inter-related”.

[3] “Jews in Jesus' and Paul's day certainly did not divide up the law into categories; on the contrary, there was a strong insistence that the law was a unity and could not be obeyed in parts. This being the case, we would require strong evidence from within the New Testament to think that the word "law" in certain texts can apply only to one part of the law.”

[4] “[…] nomos is basically for Paul a single indivisible whole […] The logic of Paul’s argument prohibits a neat distinction of moral and ceremonial law”.

[5] “‘All sin is of infinite proportion, and it is more or less heinous depending upon the honor of the person offended. Since Gog is infinitely holy, sin is infinitely evil.’ That’s why there’s no such thing as a small sin, because the slightest sin is an act of cosmic treason committed against an infinitely holy God”.

[6] Sou grato ao irmão Vanderson Moura por ter-me enviado este texto de Vincent Cheung, bem como por seu excelente trabalho, junto a Felibe Sabino, na tradução do mesmo.

[7] “First, he means that he has come to fully expound the law against human traditions and misinterpretations, so that God's demands may be truly known, and that God's people may learn and obey the full and intended meaning of the law”.

[8] “Second, he means that he has come to fully perform the true requirements of the law. That is, he has come as one born under the law to fully obey the law, so that he may be a perfect redeemer for his people”.

[9] “Third, he means that he has come to fully fulfill the prophecies in the law concerning the Messiah. That is, all that the law says about the Christ would be fulfilled in him”.

[10] “Although many commentators, as I do, mention and affirm that Jesus fulfills the law in all three senses, some commentators suggest that, even if it is true that Jesus fulfills the law in all three sense, Jesus intends only the third sense when he uses the word "fulfill." They observe how Jesus says in the next verse that nothing in the law shall disappear until everything is "accomplished," which seems to indicate that by "fulfill," he means that what the law says will finally happen in the person of Christ”.

[11] “By using the word "accomplished," although verse 18 certainly affirms the third sense of fulfillment, it does not automatically exclude the other two senses. In fact, by affirming the third sense, the second sense must also be included, because the second sense is really subsumed under the third sense. That is, by affirming that what the law says concerning the Messiah would be fulfilled in Jesus (the third sense), we automatically affirm that Jesus would perform all the requirements of the law (the second sense)”.

[12] “As for the first sense, that Jesus has come to "fulfill" the law by fully expounding its meanings, demands, and implications, verse 19 says that one who "practices and teaches" the commands of the law is great in the kingdom of heaven, and verse 20 refers to a righteousness that surpasses that of the Pharisees. After this comes a lengthy exposition in which Jesus opposes and corrects the false teachings and practices of the Pharisees and Jewish leaders”.

[13] Jesus himself encountered similar misunderstandings during his ministry. This was not because he taught against the Old Testament; rather, as we will see in a moment, the very opposite was true. One problem was that the Jewish religious authorities had added so many human traditions to the law of God, that when Jesus opposed and disobeyed these traditions, people mistook him as opposing and disobeying the law itself.

[14] “If there is to be any change when it comes to the relationship between God's people and God's law, it must be understood in the context of its fulfillment and not its nullification”.

[15] Greg L. Bahnsen escreve que a lei jurídica, embora preservando sua autoridade moral, em virtude de “[...] sua forma cultural específica fora desatrelada por meio do desaparecimento da política de ‘estado’ ou ‘corpo’ para a qual fora elaborada” (apud GUNDRY, 2003, p. 72).

[16] “For example, we have no animal sacrifices at church not because there is no need for a sacrifice, but because Christ is our once-for-all and all-sufficient sacrifice”.

[17] “Porque, ¿qué cosa más vana y más frívola, que El que los hombres ofrezcan grasa y olor hediondo de animales para reconciliar-se con Dios, o refugiarse em uma aspersión de agua o de sangre para lavar la impureza del alma?”

[18] “[...] pues siendo El espíritu, no puede darse por satisfecho com um culto y servicio que no sea espiritual”.

[19] “[...] no ha dispuesto Dios los sacrifícios, para que los que le servían se ocupasen em ejercicios terrenos, sino más bien para levantar su entendímiento más alto”.

[20] "The commandments, 'Do not commit adultery,' 'Do not murder,' 'Do not steal,' 'Do not covet,' and whatever other commandment there may be, are summed up in this one rule: 'Love your neighbor as yourself'".

[21] “[...] this means that love itself is defined by these various commandments, and that it is undefined without them. He concludes, ‘Therefore love is the fulfillment of the law’”.

[22] “What is sin, What are good works, What is righteousness? We want to do good works, we want to avoid evil works; but how can we distinguish between them? […] The Scripture says precisely what sin is. ‘Sin is the transgression of the law’ (1 John 3:4) […] God has already given us His guidance in easily understood sentences”.

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