terça-feira, 11 de junho de 2013

VOCÊS SÃO DEUSES



Uma análise do Salmo 82.6 à luz da discussão proposta pelo Movimento da Fé.

MESQUITA NETO, Nelson Ávila [1]

INTRODUÇÃO

Em anos relativamente recentes, temos contemplado o surgimento, em determinados setores do evangelicalismo moderno, de uma nova maneira de se entender as palavras iniciais do Salmo 82.6: “Vocês são deuses”. Hanegraaff escreve que os proponentes do “Movimento da Fé” normalmente citam o uso feito por Jesus deste Salmo, em João 10.31-39, “como prova de que as pessoas são, realmente, deuses em miniatura” (2004, p. 120).
Nosso objetivo neste ensaio não é imergir nos pormenores teológicos de tal movimento, mas simplesmente tomar sua maneira de interpretar esta passagem e, após breve menção de parte do discurso de alguns dos seus mais renomados líderes, analisar o Salmo em questão, bem como o uso feito por Jesus do mesmo, a fim de concluirmos se estas passagens ensinam ou não a divinização da humanidade.

SOMOS DEUSES?

No Salmo 82.6 nós lemos: “Eu disse: vocês são deuses, todos vocês são filhos do Altíssimo”. A expressão traduzida como “deuses” é אֱלֹהִים [’ēlôhîym], e esta é a mesma palavra empregada para se referir ao próprio Senhor da criação (v. 1). Com base nesse texto, muitos têm alegado possuir evidências suficientes para o ensino de que os homens são, na verdade, mais do que meros homens e compartilham da própria essência divina como pequenos deuses sobre a terra.
Kenneth Copeland, talvez um dos mais conhecidos líderes do Movimento da Fé, frequentemente faz declarações que expressam tal entendimento. Numa fita intitulada “The Force Of Love” (tape # 02-0028) ele afirmou: “Você não tem um deus em você, você é um”. [2]
Em outra fita, “Following the Faith of Abraham” (tape # 01-3001), Copeland também disse:
A razão de Deus para criar Adão foi Seu desejo de reproduzir-se. Eu quero dizer uma reprodução de Si mesmo. Ele [Adão] não era um pouquinho como Deus, ele não era quase como Deus, Ele não estava nem mesmo subordinado a Deus [...] Adão é Deus manifestado na carne. [3]

Outros pregadores de maior popularidade no Brasil também fizeram declarações muito semelhantes, como no caso de Kenneth Hagin e Morris Cerullo. Hagin chegou a dizer:
O homem... foi criado em termos de igualdade com Deus, e poderia permanecer na presença de Deus sem qualquer consciência de inferioridade... Deus nos criou tão parecidos com Ele quanto possível... Ele nos fez seres do mesmo tipo dEle mesmo... O homem vivia no Reino de Deus. Vivia em pé de igualdade com Ele... O crente é chamado de Cristo... Eis quem somos; somos Cristo! (apud HANEGRAAFF, 2004, pp. 116-117).

Cerullo, igualmente afirmou:
Vocês sabiam que desde o começo do tempo o propósito inteiro de Deus era reproduzir-se?... Quem são vocês? Vamos lá, quem são vocês? Vamos lá, digam: ‘Filhos de Deus!’ Vamos lá, digam! E aquilo que opera em nosso interior, irmão, é a expressa manifestação de tudo quanto Deus é e tem. E quando estamos aqui de pé, vocês não estão olhando para Morris Cerullo; vocês estão olhando para Deus, estão olhando para Jesus. (apud HANEGRAAFF, 2004, p. 117).

Diante de tais palavras, a pergunta que se segue é inevitável: “É realmente este o ensino desta passagem? Adão era deus, e à semelhança dele nós também somos ou podemos ser deuses?”. Cremos que o contexto deste Salmo é bastante elucidativo e precisa ser considerado.

O CONTEXTO DO SALMO 82

De acordo com Kidner (2008, p. 323), “O ponto enigmático para o intérprete é a referência repetida a ‘deuses’ que são repreendidos pela sua injustiça”, assim, para nosso objetivo, é importante determinar o referente desta expressão.
Primeiramente, é preciso destacar que pelo menos três classes de pessoas são mencionadas neste Salmo. 1) Deus (v. 1), também chamado de Altíssimo (v. 6) e Juiz (v. 1). Esta é uma classe individual, composta apenas por Ele; 2) A assembleia divina (v. 1), também chamada de deuses (vv. 1, 6), filhos (v. 6), homens e governantes (v. 7); e 3) As nações (v. 8), ou terra (v. 8), composta por ímpios culpados (v. 2) e órfãos, fracos, necessitados, oprimidos (v. 3) e pobres (v. 4).
Cada uma destas possui atribuições diferentes. Deus é retratado como aquele que preside (v. 1) e julga (v. 8). Ele é o soberano a quem tudo pertence (v. 8). Já a assembleia divina é responsável por garantir justiça e manter os direitos dos fracos e necessitados (v. 3), embora sejam acusados por Deus de absolver os ímpios e favorecê-los (v. 2). A última classe representa todos os habitantes da terra, sejam ricos ou pobres, ímpios ou justos, os quais possuem um papel passivo diante das classes anteriores, as quais se estabelecem como autoridades sobre eles.
Desta breve análise, conclui-se que a assembleia divina é composta por aqueles em posição de governo, com poder para julgar, condenando impiamente ou fazendo justiça. Como supramencionado, eles são igualmente descritos como homens que morrerão e cairão como todos os demais governantes (v. 7). Embora Kidner entenda que o ponto de vista que interpreta “deuses” aqui como uma referência a anjos pareça “mais fiel [...] à linguagem do Salmo (e.g. v. 7), e ao emprego ocasional do termo ‘deuses’ ou ‘filhos de Deus’ para anjos” (2008, p. 324), e isto encontra certo apoio em algumas interpretações rabínicas[4], especialmente em um documento de Qumran (11 Q Melchizedek), Carson (2007, p. 399) destaca que, de acordo com o uso feito da passagem por Jesus no Evangelho de João (cap. 10), “a dificuldade [...] é que o quarto evangelho não menciona anjos nem Melquisedeque. Além disso, o cenário para a citação traça um forte contraste entre Deus e ‘um simples homem’ (v. 33), não Deus e anjos”. Mas, se a referência é a homens, por que, então, são chamados de “deuses” (vv. 1, 6)?
Ao que tudo indica, não é devido a qualquer tipo de distinção substancial – eles são homens (v. 7) como os demais que compõem o grupo das “nações”. Não são anjos ou coisa assim. Mesmo que pareça encaixar-se bem o link que Kidner faz entre estes “deuses” e os “principados e potestades”, “os dominadores deste mundo tenebroso” (cf. Ef 6:12), explicando a sentença de morte que lhes sobrevirá (v. 7) por meio da alusão à “segunda morte” (cf. Mat 25:41; Apo 20:10, 14-15), da qual o diabo e seus anjos têm parte (2008, pp. 324-325), parece no mínimo estranho que, dentre outras dificuldades, Deus estivesse a chamar estes seres espirituais caídos (demônios) à responsabilidade de fazer justiça (vv. 3-4), o que não se repete em nenhum outro lugar nas Escrituras.
Pode-se dizer ainda que embora o sentido ordinário da palavra אֱלֹהִים seja “deuses”, ela pode ser ocasionalmente aplicada também a magistrados, bem como a anjos e ao próprio Deus. No Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento são fornecidos como traduções possíveis os substantivos Deus, deuses, juízes e anjos (HARRIS; ARCHER JR.; WALTKE, 2008, p. 71). Já Strong (1999, p. 39), amplia o campo semântico para “anjos, X superior, Deus (deuses) (-sa, [...]), X (muito) grande, juízes, X poderoso”[5]. Além disso, devemos lembrar, como bem destaca Noda (1997, p. 18), que “o termo elohim (Deus) é aplicado no Antigo Testamento a homens em posição de autoridade, como no caso de Moisés em relação a Aarão.” “Ele falará por ti ao povo; ele te será por boca, e tu lhe serás por Deus [לו  לאלהים׃]” (Êxo 4.16 – ARA[6]). “Certamente este texto não está ensinando que Moisés é uma exata réplica de Deus” (NODA, 1997, p. 18), como poderiam pretender os proponentes do Movimento da Fé.
Também não parece haver qualquer distinção moral que os distinga do restante das nações, visto que eles não têm agido de acordo com a vontade de Deus fazendo justiça. Este ponto é importante porque, segundo Noda, visto que, no pensamento do Movimento da Fé, a queda legou a Satanás a autoridade de governar esta terra no lugar de Adão, como “deus deste mundo”, há uma dependência da obra da redenção para o reestabelecimento do homem como governante da criação. A ideia é que “pelo novo nascimento, o homem não somente é perdoado, mas torna-se da mesma essência de Deus, e é colocado como deus desta terra” (1997, p. 17). Todavia, não há nada sugerindo que os componentes da “assembleia divina” neste Salmo sejam homens regenerados, mas pelo contrário, Deus os reprova no segundo versículo por sua conduta injusta e traz um pronunciamento de juízo ao final de Sua fala (v. 7), o qual é seguido pelo clamor de Asafe para que o próprio Deus se levante e faça justiça sobre a terra (v. 8).
Por fim, ao que tudo indica, o fundamento para tal designação, “deuses”, recai sobre o fato de desempenharem uma função que compartilha da atribuição divina de “governo”. Conforme MacDonald, “eram chamados deuses não porque eram realmente divinos, mas porque representavam Deus quando julgavam o povo” (2008, p. 289). Este, aparentemente, é o único elo entre eles e Deus. A Palavra do Senhor aqui parece lembrar-lhes que, não obstante o alto posto que ocupam, o Supremo Juiz um dia fará justiça sobre a terra e todos, incluindo estes governantes, terão de prestar contas. “Apesar da posição privilegiada que Deus lhes concedeu, serão derrubados e punidos” (MACDONALD, 2010, p. 454). Nas palavras de Calvino (1999, p. 135), “Deus investiu os juízes com um título e caráter sagrados [...] mas ele, ao mesmo tempo, mostra que isto não proporcionará suporte e proteção aos juízes iníquos” (1999, p. 235). [7]
Assim, longe da ideia de exaltação da natureza humana regenerada em uma suposta nova condição essencial de divindade, o Salmo 82 chama de maneira reprovadora aqueles que ocupam um papel de autoridade à responsabilidade que suas funções demandam, deixando claro o juízo que aguarda os que se omitem de fazer justiça ou distorcem-na.

O USO DO SALMO 82 NO DISCURSO DE JESUS

Em João 10.31, logo após a declaração de Jesus acerca de Sua filiação divina (v. 29) e Sua união com Deus (v. 30), os judeus pegam “em pedras para apedrejá-lo” conforme alegação de “blasfêmia”, visto que Jesus, concebido por eles como “um simples homem”, apresentava-se como Deus (v. 33), já que esta filiação implicava em Sua divindade.
Jesus contrapõe esta investida citando o Salmo 82: “Não está escrito na Lei de vocês: ‘Eu disse: Vocês são deuses’?” (v. 34). A pergunta que deve ser feita então é: “o que Jesus queria dizer ao apelar para este Salmo? Será que esta objeção apoia de alguma maneira o ensino de que os homens são pequenos deuses sobre a terra?”
O versículo 6 do Salmo 82 serve como a base para a argumentação de defesa de Jesus. É importante lembrar que Jesus não nega Sua filiação divina, mas a reafirma no final do verso 36. Para defender a legitimidade de apresentar-se como tal, Ele se utiliza de um argumento “qal wahomer” [do menor – os juízes iníquos – para o maior – o Santo Filho de Deus] traçado a partir do texto bíblico citado, ou, como diz Harman (2011, p. 304), um argumento que “tem por base a variedade ‘quanto mais’”, e, assim, Jesus deixa três coisas bem claras, especialmente a última:
[...] seus oponentes [...] estão parcialmente certos (ele, de fato, se faz igual a Deus), parcialmente errados (esse fato não cria um Deus rival) e profundamente enganados (eles não entenderam o sentido de suas próprias Escrituras para ver como ele as cumpre, nem conheceram a Deus bem o bastante para perceber que a revelação que ele é e traz está em continuidade com a revelação de Deus já provida e é o ápice dessa revelação). (CARSON, 2007, p. 400).

E qual é o sentido das Escrituras que fora perdido por aqueles judeus? O contraste entre Jesus e os recipientes originais daquela revelação! Como bem escreve Boor (2002, p. 260), “Se ele [Jesus] puder demonstrar-lhes a partir da própria Escritura que também ali já havia pessoas colocadas em relação especial com Deus e adjetivadas de atributos divinos, eles terão de silenciar e não poderão simplesmente condená-lo como blasfemo.” A expressão “deuses”, como visto acima, foi empregada para referir-se aqueles governantes descritos como ímpios e injustos. Se eles poderiam ser mencionados pelo título “deuses” (θεοὺς), por que deveria causar estranheza que Jesus lançasse sobre si mesmo a expressão Filho de Deus? Ou, nas palavras de Hendriksen (2004, p. 484), é como se Jesus estivesse dizendo: “Vocês nunca protestaram quanto ao uso desse termo. Vocês nunca disseram que Deus (ou Asafe) cometeram um erro ao chamar os juízes deuses. [...] Então muito mais ainda [...] vocês deveriam se abster de protestar quando me denomino Filho de Deus.”
Os versículos 35 e 36 apresentam uma estrutura condicional que deve ser considerada a fim de comprovar este entendimento da passagem.
O padrão estrutural presente nesta sentença condicional é um εἰ na prótase [o “se” da condicional] seguido de um verbo no modo indicativo, εἶπεν – um segundo aoristo ativo, o que acaba por configurar-se como uma condicional de primeira classe, visto que na apódase [o “então” da condicional] encontramos um presente do indicativo, λέγετε.
Wallace (2009, p. 690) declara que “a condicional de primeira classe indica pressuposição da verdade por causa do argumento. A idéia [sic] normal, então, é se – e assumamos que isso seja verdade por causa do argumento – então...”. Wallace também destaca que “há um grande efeito retórico no se”, e acrescenta que frequentemente “a idéia [sic] parece encorajar a uma resposta, onde o autor tenta forçar seus ouvintes a chegarem à conclusão da apódase” (2009, p. 690), desde que a audiência já concorda com a verdade da prótase.
Seguindo este raciocínio, torna-se mais fácil compreender as palavras de Jesus nestes versos. Primeiramente, Ele assume a verdade da declaração do Salmo 82.6, de que aqueles juízes iníquos haviam sido chamados de “deuses”, e então busca levar seus ouvintes a concluírem que, desde que injustos foram chamados de “deuses” e “filhos do Altíssimo”, aquele “a quem o Pai santificou” (v. 36) tem ainda mais direito de arrogar para Si o título de “Filho de Deus” (v. 36). Assim, a relação entre prótase e apódase é de evidência-inferência, ou seja, a evidência de que iníquos foram chamados de “deuses” deve levar à inferência de que chamar um justo de Filho de Deus não é incorrer em blasfêmia (v. 36).

CONCLUSÃO

Concluímos, portanto, com base no que foi discutido anteriormente, que não há nada, tanto no Salmo 82.6 quanto no uso feito por Jesus do mesmo, que nos leve a entender que estes textos ensinem qualquer ideia de deificação da humanidade. Tudo o que nos é informado é que, no primeiro caso, o julgamento de Deus um dia será derramado sobre aqueles que receberam a incumbência de governar sobre o povo com justiça e negligenciaram ou distorceram esse papel, e, no segundo caso, que fugindo da acusação de blasfêmia por arrogar-se Filho de Deus, Jesus demonstrou que ímpios no passado haviam sido denominados pelo próprio Deus como “deuses” e “filhos do Altíssimo”, o que, por inferência, o confere plena legitimidade para atribuir tais títulos a Si, visto que, longe de qualquer injustiça, Ele era aquele “santificado” e “enviado” pelo próprio Pai ao mundo (v. 36). Assim, estes textos não podem ser utilizados verdadeiramente para ensinar que os homens são de alguma maneira do mesmo tipo do Criador – pequenos deuses – , como ensinam os líderes do Movimento da Fé.




REFERÊNCIAS


BOOR, W. de. Evangelho de João I: comentário esperança. Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 2002.

BRUCE, F. F. The Gospel & epistles of John. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Company, 1983.

CALVIN, J. Commentary on Psalms. Grand Rapids: Christian Classics Ethereal Library, volume 3, 1999.

CARSON, D. A. O comentário de João. São Paulo: Shedd Publicações, 2007.

HANEGRAAFF, H. Cristianismo em crise. Rio de Janeiro: CPAD, 2004.

HARMAN, A. Salmos: comentários do Antigo Testamento. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2011.

HARRIS, R. L.; ARCHER JR., G. L; WALTKE, B. K. Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Edições Vida Nova, 2008.

HENDRIKSEN, W. João: comentário do Novo Testamento. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004.

KIDNER, D. Salmos 73-150: introdução e comentário. São Paulo: Edições Vida Nova, 2008.

MACDONALD, W. Comentário bíblico popular: Novo Testamento. São Paulo: Mundo Cristão, 2008.

________________. Comentário bíblico popular: Antigo Testamento. São Paulo: Mundo Cristão, 2010.

NODA, J. I. Somos deuses?: o que alguns televangelistas realmente estão ensinando. São Paulo: Facioli Gráfica e Editora Ltda., 1997.

STRONG, J. Strong’s hebrew dictionary. Albany: The Ages Digital Library Reference, version 1.0, 1999.

WALLACE, D. B. Gramática grega: uma sintaxe exegética do Novo Testamento. São Paulo: Editora Batista Regular do Brasil, 2009.



[1] Acadêmico do curso de Bacharel em Teologia pela Escola Teológica Charles Spurgeon.
[2] Disponível em http://www.cephasministry.com/kenneth_copeland.html. Acesso em 13 de maio de 2013, às 10:30 hs. You don't have a god in you, you are one. Todas as citações de Copeland mencionadas neste ensaio podem ser encontradas neste mesmo endereço eletrônico.
[3]Gods reason for creating Adam was His desire to reproduce Himself. I mean a reproduction of Himself. He [Adam] was not a little like God, he was not almost like God, He was not subordinate to God even [...] Adam is God manifested in the flesh
[4] Bruce escreve que “os intérpretes judaicos estavam divididos (como outros intérpretes têm estado divididos desde então) sobre a questão de se aqueles mencionados nesses termos por Deus são seres celestiais ou juízes humanos” [“Jewish interpreters were divided (as other interpreters have been divided sice then) on the question whether those addressed in these terms by God are celestial beings or human judges”].
[5]angels, X exceeding, God (gods) (-dess, [...]), X (very) great, judges, X mighty.
[6] A BÍBLIA SABRADA. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.
[7]God has invested judges with a sacred character and title [...] but he, at the same time, shows that this will afford no support and protection to wicked judges.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

A REFORMA RADICAL

          

A REFORMA RADICAL[1]

SANTOS JUNIOR, Evandro Carvalho dos (ECS)[2]

RESUMO

Analisa o movimento e suas nuanças no século XVI. A pesquisa prossegue com um olhar aproximado no que causou a origem do movimento e seus principais líderes, as diferenças entre os próprios Anabatistas e o desenvolvimento posterior em Menno Simons. Após isso, a teologia do grupo será explorada, o que reza com a fé universal das igrejas e que a torna distinta; e, em seguida, a formação e expansão do movimento serão expostas. Conclui com uma aplicação prática sobre a importância de alguns pontos valorizados pelos Anabatistas e desprezados pela igreja contemporânea.

PALAVRAS-CHAVE

Anabatismo; reforma; batismo; perseguição; Zwinglio.

INTRODUÇÃO
Devido a importância da verificação histórica de um determinado movimento na história da igreja como base para discernir a ortodoxia de tal grupo, torna-se necessário observar mais de perto o movimento Anabatista. Pois é bem provável que hoje o termo esteja carregado com conotações caricatas e posições particulares que não permitem um olhar mais próximo do que realmente aconteceu, por isso propomos uma análise do movimento, suas nuanças teológicas, diversidade e liderança.
O movimento será analisado e testado conforme o desenvolvimento histórico-teológico, e isso se torna relevante a nós hoje, pois as nuanças desse movimento, de certa forma, trouxeram heranças teológicas ao pensamento doutrinário de diversas denominações como os batistas, congregacionais, igreja dos irmãos, quakers etc, mostrando que a sua força de inicio trouxe influências posteriores.
O crescimento do pentecostalismo em nosso tempo também deve ser algo percebido em sua fonte histórica, pois a sua influência (ainda que indireta) do Anabatismo é muito forte. Assim, a ênfase na comunicação imediata com Deus, manifestações físicas e emocionais em seus cultos revela uma espantosa semelhança com aqueles. Logo, não é errado concluirmos que a expansão denominação pentecostal do nosso tempo é semelhante ao crescimento Anabatista no século XVI.
Por essas e outras razões, é necessário fazermos uma análise sobre o motivo de tão avassalador movimento. A sequencia deste ensaio se dará primeiro em focar o contexto histórico em que esses cristãos estavam inseridos e suas discordâncias posteriores; depois nos aproximaremos da própria origem do movimento e a sua relação com os primeiros líderes, isso será importante para entendermos que o mesmo não teve necessariamente uma origem direta com João Batista, como afirmavam no início; após verificarmos o pano de fundo histórico do movimento, a pesquisa repousará sobre a teologia do grupo, embora sem muita coesão doutrinária, ainda assim haverá ponto de acordo bíblico entre os próprios Anabatistas e isso será sondado; logo após, a expansão do movimento será o objeto de estudo, pois será importante vermos como o Anabatismo cresceu e tomou proporções além-mar; e, finalmente, as considerações resultantes da pesquisa acontecerão fulcradas nos dados que obtivemos, sugerindo como esse movimento pode nos ensinar em nosso contexto hodierno.


1. CONTEXTO HISTÓRICO
O Anabatismo deve ser considerado mais do que uma denominação, ou vertente teológica, porém um movimento com raízes que remontam à Reforma Protestante do séc. XVI.  Isso é importante asseverar, pois há muita incompreensão do que foi o movimento Anabatista e quais foram os seus desenvolvimentos em períodos posteriores à Reforma. Assim, há várias formas de se falar sobre este grupo: uma delas é através dos relatos dos inimigos do Anabatismo (alguns reformadores estavam incluídos):

surgiu recentemente algumas pessoas de mau caráter, que, soberbamente, vangloriando-se de ensinar em nome do Espírito, depreciam a Escritura e ridicularizam a simplicidade daqueles que ainda seguem a letra morta e que mata, como eles mesmos dizem [...] mas eu queria que me dissessem quem é esse espírito, cuja a inspiração lhes eleva a tão alto lugar, que se atrevem a menosprezar a Escritura, considerando-a como algo infantil e demasiadamente pueril. (CALVINO, 1597, p. 44)

Assim vemos com frequência uma característica muito negativa do movimento sempre ligado à declarações heréticas  e entusiásticas; o próprio Calvino foi um inimigo ferrenho deste grupo. Isso se dava por não ser um movimento monolítico de pensamento, o Anabatismo, então, se tornou estigmatizado em muitos aspectos. Porém é necessário ter os olhos voltados um pouco mais atrás, ao que originou tamanho antagonismo entre os inimigos do movimento (católicos e protestantes). Isso é necessário, pois, senão, teremos apenas uma sensação de que tudo se dava no nível da antipatia pessoal e teológica apenas.
Logo no séc. XVI havia uma grande turbulência com as ideias de Lutero circulando na Alemanha e causando impacto em quase todo o continente, assim a fé luterana conquistou muitos simpatizantes, não somente entre os nobres, como o Príncipe-eleitor da Saxônia, mas também entre alguns camponeses que se viam presos do sistema católico-medieval. Eram muitas as queixas, e um homem que demostrava-se grande opositor daquela política de indulgências e empobrecimento da nação alemã, certamente teria o apoio dos pobres também.
O que ocorreu foi que a proposta de Reforma Luterana iniciou-se do “alto”, partindo de um acordo com a nobreza; permaneciam, ainda, muitas características de um catolicismo não rompido; as mudanças eram tímidas; e, também, o feudalismo que maltratou tanto esses camponeses mantinha-se ainda com muita força, mesmo com as ideias de liberdade cristã de todos os homens expostas por Lutero. Isso causou grande conflito entre esses alemães e os intelectuais da causa luterana, pois parecia que aquelas ideias de reforma não eram aplicadas naquele contexto imediato, ou, se dava muito lentamente.   
Por conseguinte desencadeou o que foi chamado de a Revolta dos Camponeses, quando alguns companheiros da causa reformada em Wintenberg, Carlstadt e Muntzer, influenciaram esses cidadãos à medidas mais drásticas para o avanço da reforma naquela cidade. Enquanto que Muntzer estabelecia força mais frontal à causa luterana, o grupo foi adquirindo uma identidade mais indesejável aos olhos de Lutero, pois Thomas Muntzer começou a fazer reuniões nas casas e doutrinava-os segundo a sua perspectiva política-sociológica-revolucionária, o que foi bem recebido por todos do grupo ao ponto de serem chamados de Profetas de Zwickau.  
Estes ficaram conhecidos como os Radicais, devido à ênfase de uma reforma mais profunda e urgente naquele contexto e, especialmente, porque eram dados às visões, profecias e experiências místicas; o próprio “Muntzer havia dito que não confiaria em Lutero mesmo que ele tivesse engolido uma dúzia de Bíblias”, isso gerava antipatia em todo o continente que a reforma alcançava, ao passo que Lutero sabendo destas coisas respondeu que “não confiaria em Muntzer mesmo que ele tivesse engolido o Espirito Santo com penas e tudo” (DYCK, 1992, p. 32).
Um passo mais adiante, observa-se ainda entre os reformadores de primeira geração, como Zwinglio, a presença destes incômodos revolucionários da causa religiosa e social, ainda com a mesma ênfase de reformar a própria Reforma. Até então, a controvérsia se dava no campo do avanço da reforma, agora, a discordância tomou proporções doutrinárias e se tornou um campo de disputa ideológica sobre os motivos de tal reforma inacabada: o apego às estruturas e dogmas da Igreja Romana e um agrado parcial em relação aos nobres era a alegação dos radicais.
 Em Zurique os responsáveis pelo inicio deste movimento foram principalmente os próprios amigos de Zwinglio: Conrado Grebel, Félix Mantz e Hubmaier. Quanto ao que ocorria em Zurique, os desenvolvimentos desta nova fé se davam em aspectos mais calmos e diplomáticos do que aqueles ocorridos em Wintenberg, pelo menos no inicio.

2. O MOVIMENTO ANABATISTA E SEUS PRINCIPAIS LÍDERES
O movimento Anabatista recebeu este nome mais especificamente na Suíça, pois a questão do batismo foi forte entre estes cidadãos. Isso acontecia porque, para este  grupo, o batismo infantil era insustentável biblicamente e funcionava apenas como uma estratégia do governo de Zurique para alistar os novos cidadãos daquela cidade através de uma cerimônia batismal – o que mais tarde se mostrou verdadeiro.
Qualquer discordância que ameaçasse a tranquilidade da reforma naquela cidade deveria ser extirpada. Isso era uma advertência a este movimento, pois não aceitavam o batismo infantil – pelo que foram chamados de Anabatistas (rebatizadores). Porém, a situação não permaneceu apenas na área do pensamento, pelo contrário, medidas mais energéticas a este movimento foram elaboradas por Zwinglio, por causa de sua perspectiva da relação entre batismo e ordem social.  
Em 1524, Conrad Grebel - um homem proeminente na reforma da Zurique e amigo muito estimado de Zwinglio - escreveu três cartas aos líderes da Reforma na Alemanha- Martinho Lutero, André Carlstadt e Thomas Muntzer (os dois últimos estavam se separando da causa luterana na Alemanha). Estes escritos eram de caráter informativo, e revelavam à sua insatisfação com a reforma naquela cidade, apesar de Grebel discordar da política de reforma de Muntzer; o batismo infantil era o ponto principal.
Destas três cartas foi preservada apenas uma, e revelava a inconformidade com a doutrina daquela igreja oficial:

[...] A escritura nos descreve o batismo deste modo, que ele significa que, pela fé e pelo sangue de Cristo, os pecados foram lavados para aquele que é batizado, que muda seu modo de pensar, e crê antes e depois, que ele significa que o homem está morto e deve estar morto ao pecado e caminha em novidade de vida e de espirito, e que ele certamente será salvo se, de acordo com este significado, ele vive sua fé por um batismo interior [...] (Apud DICKY, 1992, p. 42).

Essa afirmação não foi bem recebida pelo conselho de Zurique, e, em Outubro de 1525, foi decidido que as “crianças deveriam continuar sendo batizadas e que quaisquer pais que insistissem na recusa seriam expulsos” daquela cidade, isso era o inicio do martírio Anabatista e “significava que a força seria usada para perseguir minorias religiosas nesta área” (DYCK, 1992, p.44).
Zwinglio por sua vez não ficou fora do conflito, mas “persuadiu o conselho a estabelecer um registro batismal em cada paróquia” por causa da sua visão sobre a Igreja e o Estado, ele se manteve ativo neste procedimento; assim, “este recurso, junto com a decisão de expulsar aqueles cidadãos [...]” foi uma maneira de supervisionar melhor o que acontecia em Zurique e “permitiu que os magistrados fizessem do batismo infantil um instrumento para a conformidade política” ( GEORGE, 1994, p. 143). Isso custou o sangue de muitas famílias, o que legou a este movimento um nome de “igreja mártir”. Esse preço saiu mais alto do que a consciência daqueles governantes poderia pagar, e, isso aconteceu não somente em Zurique, mas também na Alemanha, em cantões católicos da Suíça, Países Baixos etc.
A inimizade entre católicos e protestantes cessava quando se tinha em conta a perseguição aos Anabatistas, assim, o primeiro mártir foi Hipólito Eberle (também chamado de Bolt) em 1525, mas esse foi apenas a primeira gota de sangue de muitos que seriam massacrados por sua fé. No entanto é importante observar que havia outras questões que incomodava qualquer reformador ligado ao governo de uma cidade protestante, a saber: a crença na separação entre igreja e estado, o pacifismo e a discordância no uso de juramentos; isso era um fardo que os estadistas católicos ou protestantes não precisariam carregar se usassem a espada para reprimir tal oposição, e foi o que aconteceu conforme relata Cornelius J. Dicky:

O tratamento para com os prisioneiros era extremamente cruel. Eles eram quebrados num aparelho de tortura conhecido como cavalete de tortura, para fazê-los revelar o nome de outros, especialmente dos líderes. Para aqueles que permaneciam firmes, a execução usual era a morte na fogueira. Às vezes, primeiramente eram estrangulados; às vezes, um pequeno cartucho de pólvora era amarrado ao redor do pescoço deles como um ato de misericórdia já que o fogo rápido e a fumaça apressavam o fim. Aos homens que renunciavam à fé anabatista era dada a misericórdia da morte por decapitação, enquanto as mulheres eram afogadas. Mas algumas mulheres foram enterradas vivas, e outras ainda como também homens, foram enforcados. (1992, p.106)

Essas declarações expressam o terror que se abateu nas comunidades Anabatistas que já se formava naquela em época em busca de paz. Por conseguinte, a perseguição prosseguia no objetivo da destruição desta casta religiosa, pois, para os perseguidores, não havia diferença alguma entre os Anabatistas suíços e os Profetas  de Zwickau.
Um pouco depois desta ordem em Zurique, aparece no cenário do movimento um líder proeminente chamado Melchior Hoffman. Este homem se converteu ao luteranismo primeiramente, mais tarde simpatizou com as ideias de Zwinglio e depois pelo radicalismo de Carlstadt, até se tornar extremamente influenciado pelos Anabatistas em Estrasbugo e muito influente na expansão de suas ideias (ainda que excêntricas muitas vezes). Prosseguiu no seu alvo de espalhar pregadores e ministros, e o fez com muito sucesso ao ponto de deixar, em 1530, uma soma de trezentos batizados na cidade de Emden e enviar missionários aos Países Baixos.
O sucesso de Hoffman foi alcançado em boa parte dos Países Baixos e estes estavam sendo influenciados pela fé do movimento. Todavia como era um homem com ideias estranhas, logo se percebeu uma obsessão por assuntos de caráter profético, esse seu tempero apocalíptico, mais tarde trouxe sérios prejuízos à almejada ortodoxia no movimento.
Sobre esses exageros, Dyck conta-nos que tanto Hoffman quanto os seus discípulos profetizavam que “Estrasburgo  seria a Jerusalém espiritual e que ele mesmo era o Elias escolhido para proclamar o evento vindouro ao povo” (1992, p. 92), porém a sua morte aconteceu no seu regresso à Estrasburgo, no ano de 1533, quando se entregou à prisão, crendo que de brevemente aconteceria o cumprimento de suas profecias; nada aconteceu e “ele permaneceu na cadeia até sua morte, cerca de dez anos depois, [...] esperando até o fim a descida da Nova Jerusalém” (GEORGE, 1994, p.256).
O Anabatistas dos Países tomaram ênfase nos ensinamentos de Jesus, entre os quais, principalmente, o pacifismo. O inicio deste novo aspecto na perspectiva do movimento tornou-se evidente com dois irmãos Obbe e Dirk Philips, a quem o grupo tem grande débito por suas lideranças e legado.
Obbe e Dirk Philips foram bem educados, o primeiro foi ordenado ancião e o segundo esteve com os franciscanos e, possivelmente, recebeu treinamento teológico nesta época. A vida religiosa no movimento iniciou ainda quando eram discípulos de Jan Matthijs e foram batizados por volta de 1533-1534; porém os dois irmãos não concordavam com este homem, nem no suposto estabelecimento do reinado de Jan em Munster; a poligamia e a teocracia pretendida ali eram ensinos que não lhes permitia prosseguir com este líder – ainda mais depois da tragédia entre os munsteritas em 1534-1535.
Esses acontecimentos acima mencionados e o legalismo que aos poucos engessava o movimento teve grande impacto em Dirk, que abandonou o movimento em 1539-40, tendo ordenado Obbe e David Joris antes disso. Todavia a sua herança prosseguiu de maneira tal que a sua influência foi notória no movimento ao ponto de seu pacifismo se tornar posteriormente a principal marca do Anabatismo até hoje.
Obbe se tornou influente nos Países Baixos, e, talvez, se não tivesse surgido no quadro do movimento Menno Simons, os pacifistas se chamariam hoje de obbenitas.  Assim quando observamos a história deste movimento podemos cair no erro de apenas dar credibilidade documental aos líderes mais proeminentes, mas existe uma gama de homens que levantaram à estrutura deste movimento. Por outro lado, devemos rejeitar a perspectiva Anabatista primitiva que se proclamava como descendentes diretos de João Batista, dessa forma rejeitavam toda a história e herança deixada pelos pais da igreja.
A maneira mais refinada de um Anabatismo ortodoxo surgiu com o grande líder Menno Simons, este ergueu o movimento do monturo e trouxe-os à pacificidade, catequização, sistematização de suas doutrinas e evangelização extensiva.
Menno Simons (1496-1561) nasceu em Witmarsum, Holanda; e foi educado “na escola monástica de Bolsward” onde teve as primeiras bases para a sua formação como sacerdote católico, assim teve treinamento em “latim e podia ler um pouco de grego [...] também teve contato com certos pais da igreja, como Tertuliano, Cipriano e Eusébio” (GEORGE, 1994, 256).
A liderança de Menno aos Anabatistas da Holanda foi fundamental, pois a tragédia de Munster somada às perseguições em Zurique e as heterodoxas afirmações do grupo pelos seus líderes predecessores trouxeram instabilidade e ameaça à continuidade do movimento. Tudo isso produziu em Menno Simons grande compaixão, assim para ele aquelas pessoas eram como ovelhas sem pastor.
Depois de ter trabalhado bem o assunto da fé Anabatista naquela região, Menno produziu muito em literatura em vários aspectos, desde literatura devocional até controvérsias sobre a reforma por meio da espada pregada por radicais como Jan van Leiden; tudo isso surtiu muito efeito á fé do movimento, pelo que se estendeu em boa parte dos Países Baixos e conquistou além de muitos adeptos, diversas antipatias por parte de católicos e protestantes. Logo, não demorou muito para que Menno fosse perseguido, porém sua morte não se deu por martírio, mas de maneira natural, em 31 de Janeiro de 1561 em sua casa.

3. A TEOLOGIA ANABATISTA
Quando verificamos o material de teologia Anabatista, se torna fácil identificarmos o grupo como não monolítico de pensamento, pois tanto os radicais de Munster quanto os pacificadores de Menno, são descritos como sem definição exata e sistematizada de suas doutrinas.
Porém é verdade que a fé do movimento teve grande desenvolvimento em relação à sua  crença inicial, porque os lideres contribuíram, o movimento foi muito privilegiado. Isso perpassou as perseguições realizadas a estes de um modo tal que sua teologia foi amadurecendo no calor do martírio, porém, além dos escritos de seus principais líderes ainda restou a Confissão de Fé de Schleitheim (1527) composta por sete artigos e bem acessível àqueles irmãos, pois “à nível de doutrina, a decisão aqui era simples, bíblica, completa e suficientemente consistente tal que um simples cristão podia compreendê-la, testemunhar a respeito dela e sofrer por ela” (DYCK, 1992, 54). A descrição da teologia Anabatista que se segue é compatível com a posição majoritária do movimento (huteritas, amish e menonitas), embora se reconheça que há grande diversidade de crenças entre eles.

3.1 Batismo somente de crentes.
O batismo deve ser realizado somente às pessoas que professam fé em Cristo, ainda que seja uma confissão acompanhada de pouca eloquência e ainda recente, mesmo assim deve ser consciente e vinda do próprio crente. O modo de batismo não era tão importante assim, pois batizavam de “início por afusão ou aspersão e, depois, por imersão” (CAIRNS, 2008, p.277) porque o que era de crucial importância estava relacionado ao sujeito do batismo, e se alguém desejasse ser um Anabatista e foi batizado na infância, então seria [re]batizado.
Esse era um ponto pelo qual os anabatistas sofriam, morriam e eram exilados, porque a convicção do seu tempo era que os bebês faziam deviam ser batizados; pelos católicos por que “o primeiro efeito do batismo é a remissão de pecado” e, esse sacramento da Igreja Católico era necessário ser aplicado às crianças visto que “no batismo as crianças recebem a graça espiritual” (HODGE, 2001, pp. 1470,1471). Assim, se alguma criança fosse vitimada pela mortalidade infantil predominante na idade média, já teria recebido graça salvadora pelo sacramentum regenerationis.
Entre os protestantes o ensino de regeneração batismal foi abandonado devido o frágil alicerce bíblico em que ela se sustentava, e porque isso não coadunava com a ideia de sola gratia afirmada por eles. “O resultado foi ou abandono da prática, ou a construção de uma nova justificativa teológica para preservá-la”(FERREIRA; MYATT, 2007,  p.940).
Como foi observado anteriormente, o batismo representava uma filiação não somente à Igreja, mas também ao Estado; pois defender o contrário disso era sinônimo de anarquia, pois naquele período de introdução à reforma “[...] os reformadores não chegaram a aceitar a noção de uma separação completa da Igreja e do Estado”. Assim, Zwinglio que se mostrou no início simpatizante com as ideias dos Anabatistas, logo se revelou um oponente forte ao movimento depois de ter analisado as consequências daquele ensino. Isso levou alguns lideres de cantões protestantes a pensar que “já que não era mais possível apelar para a doutrina da regeneração batismal [..]”, algo, porém, precisava ser feito; então, “com o intuito de apoiar esta prática Zwinglio e Bullinger desenvolveram uma defesa inédita do batismo infantil”, edificada com bases mais evangélicas “essa defesa foi construída com a nova teologia da aliança” (2007, p. 940).
No entanto, os Anabatistas não estavam satisfeitos com a explicação protestante sobre o batismo infantil e pedia que lhes mostrassem na Bíblia tal batismo, por isso afirmavam aos que batizavam bebês na época:

“se eles nos mostrarem de acordo com as Sagradas Escrituras que estamos errados ou equivocados, nós nos retiraremos e nos retrataremos com gosto, e com gosto sofreremos condenação e punição por nossa ofensa. Mas, se não se puder ser provado, espero por Deus que se arrependam e permitam ser instruídos.” (DYCK, 1992, p.55)

Essa afirmação era algo indigesto àquela época, mas segundo esses cristãos o principio do sola scriptura estava apenas sendo considerado de maneira consistente. E, se isso deveria ser administrado em todas as doutrinas bíblicas, então a questão do batismo não poderia ser uma exceção.

3.2  A Igreja e o Estado
O principio de que a Bíblia deve nortear os assuntos da relação da Igreja com o Estado, também teve um grande impacto à este povo, pois a Igreja deve ser considerada não como um uma extensão do Estado ou como uma Instituição de auxilio à este, mas como um entis divino na terra que não deve receber influência do Estado e nem interferir neste.
A igreja não deve ser considerada como constituída de uma parte invisível, mas com um só corpo visível de crentes batizados, e que testemunham de sua fé como peregrinos neste mundo que exercem a disciplina cristã em amor e nascida no Novo Testamento – não existente ainda na Antiga Aliança; assim, “por ocasião do dia de Pentecostes, o Espírito Santo criou um novo povo, a Igreja”(LEDERACH, 1993, p.93).

3.3 A hermenêutica Anabatista e a lei de Deus
Nos grupos Anabatistas algumas características da Teologia da Nova Aliança foram encontradas em muitas de suas afirmações. Essas peculiaridades na Reforma Radical mantinham elementos de uma “Nova Lei”, que estava em oposição à lei de Moisés, asseverando que o Novo Testamento possuía autoridade hermenêutica sobre todo o Antigo Testamento.
Algo ainda muito comum nesse grupo era a sua tipologia bem semelhante ao neo-aliancismo moderno. Como bem expressou o anabatista Hans Betz martirizado em (1537):
Cristo nos mostra a lei de Deus para o homem: "Faça aos outros o que gostaria que fizessem com você. "Ele nos mostra o que é bom e o que é ruim para que possamos viver de uma maneira diferente. Cristo é o cumprimento da lei que foi dada em figuras a Moisés. Todos as figuras da  lei finalizam em Cristo, porque Cristo é a lei. [sic] pois obedecer a lei, diz Cristo, é amar a Deus com toda a força da nossa almas, e amar o nosso próximo como a nós mesmos. Nestes breves mandamentos a lei é recolhida em Cristo (apud HOOVER, 2008, p. 107).

Essa era uma declaração típica de um anabatista do séc. XVI. Os radicais, como eram conhecidos, enfatizavam a ética do amor, pois a “Fé e amor de um coração puro, diz Paulo, é a soma de todos os mandamentos [...]” e, “é assim que a lei e os profetas são cumpridos em Cristo, nosso Senhor. Esta é a maneira que Ele tem nos mostrado que conduz ao Pai e a vida eterna [...]”(BETZ apud HOOVER, 2008, pp. 107,108).
Essa era uma perspectiva contrária à posição majoritária daquela época, na qual se afirmava uma continuidade das alianças, incluindo a Aliança Abraâmica para dentro da Nova Aliança a fim de batizar os bebês como uma substituição da circuncisão.

3.4 Em memória de mim
A ceia Anabatista é considerada a forma zwingliana de ordenança dentro Anabatismo. Não houve uma alteração severa na maneira memorial em que a ceia do Senhor era crida por Zwinglio conforme pretendido  em Lc 22.19 nesse ponto não havia problema com o reformador; porém entre Católicos, Luteranos e Calvinistas posteriores a  questão era diferente. Esse assunto se tornou um forte motivo de perseguição também, assim “os mártires anabatistas eram frequentemente interrogados sobre sua teologia eucarística” (GEORGE, 1994, p. 289).
Embora a ceia do Senhor fosse memorial, o Anabatistas consideravam como um elo importante de amor e comunhão ao corpo de Cristo, “assim, os cristãos que partilhavam da ceia juntos tinham de pôr de lado todas as desavenças e contendas” porque a memória de Cristo merecia solenidade e  “deviam perdoar uns aos outros, servir uns aos outros, censurar e exortar uns aos outros[...]” (GEORGE, 1994, p. 291).           
Quanto aos que administrava ceia do Senhor, os irmãos (como também eram conhecidos) não eram dogmáticos quanto ao dever de ser somente um ministro devidamente ordenado sempre, mas entendiam que o “que realmente importa não é o que acontece aos emblemas, e nem quem estava administrando a comunhão”, mas “[...]a qualidade da vida das pessoas, reunidas em torno do memorial, e seu relacionamento umas com as outras é o que se revestem da real importância” (LEDERACH, 1993, p.124).   

4. FORMAÇÃO E EXPANSÃO DO MOVIMENTO
Com considerável observação do movimento na História da Igreja o estudioso deverá estar disposto a ter diante de si uma perspectiva de desenvolvimento e amadurecimento do movimento, tanto em suas convicções iniciais quanto a forma que o movimento assumiu.
 Já foi dito anteriormente que os radicais munsteritas foram o núcleo de formação do movimento, porém deve-se perceber que mais adiante Menno Simons pastoreou o grupo que assumiu posições mais ortodoxas. Enquanto observamos o que se passou no Anabatismo alemão, suíço e holandês, pretendemos abrir a cortina da expansão e êxito missionário do movimento para termos um quadro mais completo do Anabatismo como um todo.
O conhecido Tratado de Westfália (1648) entregou algumas cidades à França, menos Mulhasen; porém esta divisão teve implicações à causa Anabatista, desta forma prosseguiam em suas reuniões da maneira que desejava. Esse foi um bom tempo ao grupo, agora chamado de menonitas, pois gozavam de certa liberdade em Alsácia por causa do Tratado, e começava a receber refugiados, entre eles Jacó Ammann. Este homem se identificava com o movimento – pois ele mesmo se identificava como um menonita e foi ordenado ministro posteriormente - porém trouxe aspectos mais ascéticos e severos ao movimento, como a insistência da prática de lavar os pés, quem em casos de disciplina “até os membros da família deveriam evitá-los, deixando-os comer, dormir e viver completamente sozinhos” e, em relação ao modo de vestir, exigia-se “[...] que os membros usassem roupas simples incluindo barba aos homens” (DYCK, 1992, p.138).
Os discípulos de Jacó Ammann ficaram conhecidos como amish, e mais tarde foram expulsos da Alsácia pelas autoridades francesas em 1712, porém mesmo permanecendo alguns, ainda foi dada nova ordem de partida em 1744, 1766 e 1780.  Após esta retirada, os amish formaram-se em colônias de “maiores migrações à América [...] até o século XIX [...], logo que essa mudança aconteceu, a expansão desse tipo de Anabatismo alcançou o “Canadá, bem como como em Ohio e outros estados centro-orientais” (DYCK, 1992, p.139).
Os menonitas, por sua vez, mostravam-se bem lucrativos à qualquer cidade que os recebia, isso se devia à ênfase no trabalho honesto por parte desses irmãos e as colônias estabelecidas gozavam de certa liberdade devido este fator. O estudioso menonita Dyck nos informa que foi dessa maneira que a Rússia logo recebeu os menonitas, um alvará foi expedido a esses irmãos em “3 de março de 1788 e mais tarde reafirmado pelo Czar Paulo I, a 8 de setembro de 1800” (1992, p.154) que lhes conferia permanência e privilégios como qualquer outro imigrante naquele lugar.
Até então os menonitas russos falavam entre si em idioma alemão, quando “o Departamento Estadual de Instrução observou de perto as escolas menonitas e nos anos de 1891 toda instrução seria dada no idioma russo” (DYCK,1992, p.168), o que trouxe declínio à força da identidade do movimento, um pouco antes disso acontecia o acordo de serviço militar de 1874, no qual fez com que 18.000 menonitas se mudassem para os Estados Unidos e Canadá, porém os que permaneceram, sofreram fome em 1921 a 1923 na nova URSS.
A expansão do movimento se dava rapidamente devido a ênfase missionário, e também a intolerância do país que lhes recebia. Colônias menonitas foram formadas na Ásia, começando pela Indonésia, em 1854, e prosseguindo o alcance aos redor até chegar ao continente africano em 1911 na República do Zaire. A influência menonita também chegou à América Latina, os primeiros registros são de 1877 na Argentina e, no Brasil, em 10 de fevereiro de 1930 no estado de Santa Catarina; em solo brasileiro, as escolas menonitas são supervisionadas pelo estado, porém as escolas permanecem com excelente qualidade e “muitos não-menonitas estão sendo ensinados junto com os seus próprios alunos[...]”, assim houve boa receptividade à esses irmãos, e, com isso, trouxe vários benefícios, pois “um instituto Bíblico foi estabelecido em Curitiba [...]” e “um orfanato na mesma cidade, também mantido pelas igrejas Irmãos Menonitas” (DYCK,1992, p.306).   

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após a verificação da história, doutrina e práticas do Anabatismo estamos certos de que a análise deve ter um interesse maior do que a curiosidade acadêmica, porque a vida deste povo é de grande incentivo à práxis da igreja contemporânea que tem perdido referenciais de fé, testemunho e piedade. Cremos que a história Anabatista tem muito a nos ensinar.
Outro fator que merece relevo é que a teologia deste povo não foi realizada dentro de escritórios, mas em meio a perseguições e açoites. Isso deve fazer-nos pensar como a teologia está intrinsecamente ligada ao povo comum que sofre e peregrina neste mundo, como se dele não permanecesse. É verdade que eles cometeram muitos erros, porém é fato que em muitas coisas foram um povo que pensava além de sua geração e foram perseguidos por isso.
Assim, devemos nos abster de qualquer opinião quando nos for passada informações bem caricatas sobre Anabatistas, pois os mesmos (no início) não formavam um grupo de pensamento monolítico e boa parte do que temos à nossa disposição hoje vem dos opositores do movimento. Certamente haverá grande transformação no coração do pensamento e prática da igreja hodierna quando houver mais dedicação, simplicidade, testemunho e piedade como estes irmãos tiveram. Que Deus tenha misericórdia do Seu povo até que esse dia chegue.

REFERÊNCIAS

1. CALVINO, Juan. Institución de la Religion Cristiana. Traducida y publicada por Cipriano de Valera em 1597 por Luis de Usoz y Rio en 1858. Nueva edicion revisada em 1967. Países Bajos: Fundacion Editorial de Literatura Reformada, 1967. vol I.

2. HOOVER, Peter; The Secret of the Strength: What Would the Anabaptists Tell This Generation?. Disponível em:. <http://www.elcristianismoprimitivo.com/pdf/the-secret-of-the-strength-.pdf>. Acesso em: 07 junho 2012. (Tradução minha)

3.FERREIRA, Franklin; MYATT, Alan. Teologia Sistemática: uma análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual. 1ª edição. São Paulo: Edições Vida Nova, 2007.

4. CAIRNS, Earle E. O cristianismo através dos séculos: uma história da igreja cristã. 3ª edição revisada e ampliada. São Paulo: Edições Vida Nova, 2008.

5. HODGE, Charles. Teologia Sistemática. São Paulo: Editora Hagnos, 2001.

6. GEORGE, Timothy. Teologia dos reformadores. 1ª edição. São Paulo: Edições Vida Nova, 1994.

7. DYCK, Cornelius J. Uma introdução à história menonita. 1ª edição. Campinas: Editora Cristã Unida – Associação Evangélica Menonita, 1992.

8. LEDERACH, Paul M. Uma terceira opção. 1ª edição. Campinas: Editora Cristã Unida – Associação Evangélica Menonita, 1993. 









[1] Ensaio acadêmico apresentado à disciplina de História da Igreja II, ministrada pelo professor Bruno Calíope, semestre 2012.3.
[2] Bacharelando em Teologia na Escola Teológica Charles Spurgeon.
                                                                                                                                                                              
        

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