terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Seminário na Alemanha Nazista

Quando a Igreja Luterana Alemã apoiou os nazistas em 1933, um seleto grupo de líderes dentro da igreja formou um movimento de resistência eclesiástica, o qual veio a se chamar A Igreja Confessante. Eles logo fundaram cinco novos seminários para treinar a próxima geração de ministros. Aproveitaram um jovem professor de teologia da Universidade de Berlim para dirigir o seminário recém criado em Zingst, e posteriormente em Finkenwalde.
O modelo predominante para a educação teológica na Alemanha era amplamente acadêmico, e as universidades dominaram a educação ministerial. Desde o Iluminismo (Aufklarung em alemão) os pastores alemães tinham digladiado pela respeitabilidade ao lado de médicos e advogados – profissionais das disciplinas mais “respeitáveis”.  Eruditos no estudo bíblico e teólogos tinham de fazer o mesmo em contraposição aos seus colegas na academia. Após um punhado de palestras para futuros ministros e teólogos em Friedrich Wilhelm University em Berlin, Dietrich Bonhoeffer sentiu que este tipo de ethos educacional estava errado – e era, por fim, danoso – para a igreja em geral.
Então, o novo seminário em Finkenwalde deu a Bonhoeffer uma oportunidade para traçar um curso diferente para a educação ministerial. Ele focaria sua escola na Escritura, oração e confissão teológica, e como Herr Direktor, Bonhoeffer poderia sustentar estes três pilares como achasse por bem. Mas nem todos concordaram. O altaneiro Karl Barth, por exemplo, protestou, dentre outros líderes na Igreja Confessante. Muitos estudantes seguiram o exemplo, contrariando as inovações de Bonhoeffer. Formidável demais para ser demitido, ele se manteve firme, e acabou ganhando tanto seus alunos como seus críticos.
Infelizmente, a história de Finkenwalde não acaba com sucesso – pelo menos não como a palavra “sucesso” é frequentemente definida, com os requisitos métricos de números e proezas. A maioria dos alunos de Bonhoeffer nunca chegou ao ministério pastoral. Vinte e sete foram presos. O seminário, como um todo, teve uma vida curta, fechado pela Gestapo após dois anos apenas.
Dito isto, o que foi realizado ali durante aqueles dois anos merece nota. Então, vamos considerar os três pilares de Bonhoeffer para a educação no seminário: Escritura, oração e confissão teológica.
Construa sobre a Palavra

Depois de alguns meses em operação, Bonhoeffer escreveu uma carta para as igrejas mantenedoras explicando a missão do seminário:
O caráter especial de um seminário da Igreja Confessante deriva da difícil situação na qual temos sido colocados devido ao conflito na igreja. A Bíblia constitui o ponto focal de nosso trabalho. Ela tem se tornado para nós uma vez mais o ponto de partida e o centro de nosso labor teológico e de toda a nossa ação cristã. (1)
Que esse foco bíblico era “especial” mostra porque a Igreja Luterana Alemã murchou sob o governo Nazista. A igreja como um todo há muito havia se afastado de suas amarras bíblicas. Sem um sólido fundamento bíblico, a igreja simplesmente não possuía os recursos necessários para se envolver nas questões éticas da década de 1930, a qual, em seguida, levou tragicamente às atrocidades na década de 1940 e da Segunda Guerra Mundial.
As palavras de Bonhoeffer também revelam sua convicção de que a Bíblia deve permanecer como o ponto central na educação ministerial e na igreja. A Escritura como o ponto focal no Finkenwalde implicava que os estudantes seriam treinados no Hebraico e no Grego. Eles receberiam instrução no conteúdo bíblico. “A congregação”, Bonhoeffer disse uma vez, “é construída unicamente sobre a Palavra de Deus.” (2) Bonhoeffer exigia que os alunos praticassem a lectio divina, lendo um Salmo e capítulos do Antigo e do Novo Testamento a cada dia. Os alunos também tinham de meditar numa passagem seleta a cada semana. Ele tinha a intenção de ajudá-los a formar os hábitos corretos.
Os alunos de Finkenwalde e o futuro biógrafo de Bonhoeffer, Eberhard Bethge, entenderam a mensagem. Anos depois, Bethge testificou, “Porque eu sou um pregador da Palavra, não posso expor as Escrituras a menos que as deixe falar para mim todos os dias. Usarei indevidamente a Palavra no meu serviço se não me mantiver meditando sobre ela em oração.” (3)

A Oração Faz um Pastor

Os cursos de Bonhoeffer sobre oração usavam a Oração do Senhor e o Catecismo de Lutero para instrução. Ele também exigia que os estudantes orassem, como um tipo de dever de casa. Os críticos o acusaram de que estava sendo legalista; alguém até mesmo chegou a dizer a ele que o tempo era muito urgente para oração e meditação. Bonhoeffer respondeu a estas críticas vigorosamente: “Isso ou mostra uma total falta de compreensão por parte dos jovens teólogos de hoje, ou uma ignorância blasfema de como a pregação e o ensino vêm a existência.” (4) Como Bonhoeffer disse uma vez a sua Congregação em Londres, “Uma congregação que não ora pelo ministério do seu pastor, não é mais uma congregação. Um pastor que não ora diariamente por sua congregação, não é mais um pastor.” (5)

Confissão como Currículo

Por fim, há o terceiro pilar: a confissão teológica. Como um luterano alemão, o padrão confessional de Bonhoeffer era A Confissão de Augsburg (1530), contida no Livro de Concórdia (1580). Da mesma maneira que a Escritura e a oração eram eclipsadas na Igreja Luterana, assim também acontecia com a confissão. Como tantas outras denominações no século 20, a Igreja Luterana Alemã professava sua confissão teológica da boca pra fora, e não mais do que isso.
Não era assim no seminário de Bonhoeffer. Bethge comenta sobre como a cópia do Livro de Concórdia de Bonhoeffer estava sublinhada, marcada com notas nas laterais, pontos de exclamação e interrogações. É evidente que Bonhoeffer lutou com sua confissão e a levou a sério. (6) De fato, para Bonhoeffer a confissão era o currículo da teologia.
Mas ele não estava apenas interessado em que seus alunos conhecessem e lutassem com a teologia. Ele também queria que eles vivessem-na. A confissão moldaria suas vidas, sua ética, sua pregação e suas igrejas. “Teologia é a submissão ao conhecimento coerente e bem ordenado da palavra de Deus”, ele escreveu. “Ela serve à pura proclamação da palavra na congregação e à edificação da congregação de acordo com a palavra de Deus.” (7)

Seminários São para a Igreja

Então, os seminários existem pra quê? Assim como a teologia que ensinam, eles existem para a igreja. E acerca do que eles deveriam tratar? Assim como a igreja para quem eles existem, eles deveriam tratar sobre a Escritura, a oração e a confissão teológica. Além do mais, estas são as marcas de todos os cristãos em todos os tempos, pois são os hábitos da vida cristã.

Nota do Editor: confira o novo livro de Nichols,  Bonhoeffer on the Christian Life: From the Cross, for the World (Crossway).

1 Dietrich Bonhoeffer, "A Greeting from the Finkenwalde Seminary," Oct. 1935, The Way to Freedom (New York: Harper & Row, 1966), 35.
2 Dietrich Bonhoeffer, "Theology and the Congregation," Dietrich Bonhoeffer Works, Vol 16: 1940-1945 (Minneapolis: Fortress Press, 2006), 494.
3 Ibid., 57.
4 Cited in Eberhard Bethge, Dietrich Bonhoeffer: A Biography (Minneapolis: Fortress Press, 2000), 465.
5 Dietrich Bonhoeffer, Oct. 22, 1933, in Dietrich Bonhoeffer Works, Vol 13: London, 1933-1935 (Minneapolis: Fortress Press, 2007), 325.
6 Bethge, Dietrich Bonhoeffer, 449.
7 Bonhoffer, DBW, Vol. 16, 494.

Stephen J. Nichols é professor e pesquisador do cristianismo e da cultura em Lancaster Bible College, além de ser o autor de mais de uma dezena de livros, incluindo seu mais recente, Welcome to the Story: Reading, Living, and Loving God’s Word (Crossway).




Tradução: Nelson Ávila.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

O TEÍSMO ABERTO E AS SAGRADAS ESCRITURAS


MESQUITA NETO, Nelson Ávila (E. T. C. S.).
1 INTRODUÇÃO
O Tesísmo Aberto, ou “Teologia Relacional”, como é conhecido no Brasil, foi motivo de acentuado debate há alguns anos, em virtude da aderência a esta corrente teológica por parte de alguns pastores que gozavam de relevante popularidade e influência.
Embora o movimento não tenha saboreado a receptividade esperada, arrefecendo após angariar numerosas críticas das posições históricas (calvinismo e arminianismo), as quais, ainda que conflitantes, uniram-se a fim de refutar aquela, o Teísmo Aberto permanece vivo no ambiente eclesiástico e acadêmico, tendo demonstrado, principalmente em seus pronunciamentos nesta última esfera, bastante produtividade, como comprovam os livros e artigos de seus proponentes que continuam a proliferar-se ano após ano.
Assim sendo, cremos fazer-se indispensável uma exposição, ainda que breve, de sua proposta, afim de constatarmos se esta apresenta-se como uma abordagem teológica sadia, que merece ser estudada e considerada como genuína alternativa bíblica para os temas a que se propõe responder, ou se deve ser rejeitada e combatida com intrepidez, por revelar um caráter não-bíblico e ofensivo ao Deus da Revelação.
Principiaremos apresentando aquilo que parece ser a base sob a qual se fundamenta a visão aberta de Deus, prosseguindo através de uma síntese das principais características que compõem o ensino geral do Teísmo Aberto. A partir daí, veremos algumas proposições teológicas e filosóficas que claramente influenciaram na formulação de seu pensamento, para logo em seguida abordarmos seu desenvolvimento prático, findando com o indispensável escrutínio bíblico da matéria em questão.
2 O TEÍSMO ABERTO E O AMOR DE DEUS: O ATRIBUTO EXALTADO
Deus é amor! Este tem sido o maior slogan cristão dos nossos tempos. Sem dúvida, Deus é amor! É maravilhoso saber que entre Seus atributos encontra-se o amor. Assim como Deus é imutável (“Porque eu, o Senhor, não mudo” [Ml 3.6[1]]) e Eterno (Gn 21.33; Dt 33.27; Jr 10.10), Ele “é amor” (1 jo 4.8), e por isso podemos confiar e nos alegrar na palavra que diz: “com amor eterno eu te amei”(Jr 31.3). Desde o princípio Deus era e continuará sendo pelos séculos dos séculos o “Deus de amor” (2 Cor 13.11); Ele não ama hoje e amanhã deixa de amar. Seu amor permanece inabalável a preencher os recipientes de Sua misericórdia. Ou, nas palavras de Bavinck (2001, p. 150), “Esse amor não é sujeito ao tempo e ao espaço, mas está acima tanto de um quanto de outro, e vem da eternidade para o coração dos filhos de Deus”.
Deus é perfeito e o amor é uma das perfeições de Seu caráter. Deus não pode ser mais amoroso, ou menos amoroso, pois de outra forma Ele não seria perfeito; haveria algo ainda a ser melhorado, ou acrescentado, ao Ser de Deus. Portanto, Deus ama na medida certa. Contudo, quanta confusão se tem levantado sempre que se eleva um dos atributos de Deus acima dos demais. Por exemplo: através da ênfase na Onipresença e na Imanência de Deus, chegou-se ao Panteísmo, onde Deus (um ser impessoal) e o cosmos são indistintos. Sendo assim, Deus é tudo e tudo é igualmente Deus. Do mesmo modo, através da ênfase na Transcendência divina, chegou-se ao agnosticismo, onde qualquer conhecimento acerca da Divindade torna-se plenamente impossível. Da ênfase na Onipotência e Onisciência, originou-se o Fatalismo mórbido, que coloca o homem na condição de um ser passivo e inerte, negando-lhe qualquer tipo de responsabilidades. Mesmo que seja o amor, um dos considerados mais sublimes atributos de Deus, este também não pode ser colocado acima, como gerenciador, dos demais atributos do Ser de Deus, pois todos eles coexistem igualmente. No entanto, a ênfase no amor de Deus tem sido marca registrada desta geração e tem trazido drásticas conseqüências para a igreja. O “Teísmo Aberto” é inquestionavelmente marcado por esta ênfase.
3 O QUE ENSINA O TEÍSMO ABERTO?
Em síntese, o “Teísmo Aberto” (ou “Teologia Relacional”) ensina que, por amor, Deus trouxe à existência criaturas e quis relacionar-se com elas, mas, para que este relacionamento fosse verdadeiro, estas pessoas precisavam ser totalmente livres; por isso, Deus, em amor a este relacionamento, abriu mão de Sua soberania, erguendo-se do trono do universo e unindo-se aos agentes livres que criou, para juntamente com Eles construir o futuro. Deus também deixou de lado Sua Onisciência, pois, não haveria um relacionamento de fato livre se ele soubesse o que faríamos amanhã, por isso, Deus poderia saber tudo acerca do passado e do presente, mas não do futuro. Na verdade, o conceito de onisciência é redefinido por esta visão. Como expressa Pinnock, um dos maiores propagadores da visão aberta de Deus:
Vemos o futuro não como totalmente estabelecido, e isto, é claro, relata os riscos que Deus encara no futuro. Nossa segurança advém, não da crença de que Deus conhece tudo exaustivamente (uma visão que questionamos biblicamente), mas da crença que ele tem a sabedoria para lidar com qualquer surpresa que se levante (apud REYMOND, 2011, p. 347).
Este relacionamento também continuaria não sendo livre se Deus interferisse nas atitudes livres de Suas criaturas sempre que algo não saísse de acordo com Seus planos, por isso Deus mutilou Sua Onipotência, podendo tudo, mas nada fazendo sem consentimento prévio de todos os agentes livres envolvidos na situação.
4 O TEÍSMO ABERTO E SUA ORIGEM
Uma boa pergunta a se fazer seria: como os proponentes desta corrente teológica chegaram a estes conceitos? Alguns de seus partidários afirmam veementemente que tais concepções são fruto de profunda reflexão filosófico-teológica, o que garantiria a originalidade da perspectiva. Na verdade, um de seus congressos no Brasil chegou a receber o tema: “Um Novo Deus no Mercado”. Contudo, uma breve retrospectiva nos mostrará que o ensino do Teísmo Aberto encontra precedentes em velhas propostas refutadas a muito pelo cristianismo histórico.
4.1 O teísmo aberto e a filosofia grega
De acordo com Lopes (2008, p. 12), “Algumas das idéias da Teologia Relacional têm uma impressionante semelhança com as especulações dos filósofos gregos”, como por exemplo, “o livre-arbítrio libertário” que traz “a idéia de que o arbítrio humano é completamente independente de forças externas e internas e, portanto, totalmente livre em tomar decisões. Isso ocorre porque o mundo e a história são governados pelo acaso”.
Há também o conceito da “limitação de Deus”. “Os deuses da mitologia grega, cantados na Odisséia e na Ilíada de Homero, são concebidos como seres finitos e limitados, que não governam o mundo de acordo com sua vontade, mas espreitam os homens e suas decisões, intervindo algumas vezes” (LOPES, 2008, p. 12).
Por fim, Lopes cita “o conceito de um futuro aberto e indeterminado” onde “encontramos a idéia de um mundo autônomo, funcionando por si mesmo, já que não havia deuses que determinassem seu curso, e visto que as decisões humanas eram imprevisíveis”. Tais idéias, como esposadas acima, “[...] podem ser encontradas em filósofos como Tales, Epicuro, Platão e Aristóteles, para mencionar alguns” (LOPES, 2008, p. 13), e mantêm plena correspondência com a visão aberta de Deus.
4.2 O teísmo aberto e o arminianismo
Apesar de tantas semelhanças entre os conceitos do Teísmo Aberto e da filosofia grega, para Lopes, “A maior influência na Teologia Relacional, sem dúvida é o arminianismo” (2008, p. 13). Segundo ele:
Podemos afirmar inclusive que ela é um desenvolvimento lógico do arminianismo, ou ainda, o arminianismo levado às suas últimas consequências [...] O ponto central do arminianismo é que a salvação depende da decisão humana. É o homem, com seu livre-arbítrio, quem decide o seu futuro e, portanto, o futuro da raça humana. A salvação foi dada por Deus mas ela só é eficaz se o homem decidir aceitá-la.” (LOPES, 2008, pp. 13, 15)
Em seu livreto “Os cinco pontos do calvinismo”, Seaton (pp. 3, 4) faz distinção entre a visão calvinista e a arminiana, relacionando os cinco pontos do arminianismo da seguinte maneira: “1. Livre-arbítrio, ou capacidade humana [...] 2. Eleição condicional [...] 3.Redenção universal, ou expiação geral [...] 4. A obra do Espírito Santo na regeneração limitada pela vontade humana [...] 5. Cair da graça”. A este respeito, Lopes (2008, p. 15.) escreve: “A Teologia Relaconal concorda com praticamente todos os pontos da interpretação arminiana da salvação com exceção daquele que fala da presciência de Deus [eleição condicional], que Deus anteviu a escolha dos que haveriam de ser salvos”.
4.3 O teísmo aberto e o socinianismo
De acordo com Lopes (2008, p. 16), Socinianismo “[...] é o nome que se dá a outra corrente teológica do século XVI originada nas idéias dos italianos Lélio Socínio (1525-1562) e seu sobrinho Fausto Socínio (1539-1604)” os quais “[...] negavam em seus escritos a deidade de Cristo, Sua morte vicária na cruz e a imputação da Sua justiça aos pecadores arrependidos. Suas idéias eram tão heréticas que foram condenadas pelos católicos e pelos protestantes”.
A similaridade entre estas duas visões é justamente o trato dispensado para com a presciência divina.
[...] Lélio e Fausto argumentaram que os calvinistas estavam, a princípio, logicamente corretos em dizer que o conhecimento que Deus tem do futuro se baseia no fato que o próprio Deus havia determinado tudo o que vai acontecer. Deus sabe as coisas que vão acontecer porque Ele mesmo determinou essas coisas. Todavia, eles prosseguiram a argumentar que os arminianos estão corretos quando dizem que é inadmissível pensar que Deus determinou tudo que vai acontecer, pois isso anula a liberdade humana. Logo, para que se possa preservar a plena liberdade do homem, é preciso negar não somente que Deus preordenou as decisões livres de agentes livres, mas também que Deus conhece de antemão quais serão tais decisões. E assim, os socinianos foram além do calvinismo e do arminianismo, negando a soberania de Deus (calvinistas) e também a Sua presciência (arminianos) [...] É exatamente esse o ensino da Teologia Relacional quanto à presciência de Deus [...] A semelhança é notável, até mesmo nos detalhes. Os socinianos diziam que a onisciência de Deus significava que Deus conhecia tudo o que era possível de ser conhecido. Como as decisões livres dos seres humanos eram impossíveis de serem conhecidas – exatamente porque eram livres – Deus não podia ter conhecimento delas. Os teólogos relacionais argumentam da mesma forma, redefinindo a onisciência de Deus de maneira similar” (LOPES, 2008, pp. 16, 17, 18.).
A conclusão é óbvia: “Se o homem tem livre-arbítrio e as coisas podem ser diferentes, Deus não pode ser onisciente” (CLARK, 2010, p. 52). Socinianos e Teístas Abertos preferiam resguardar a liberdade humana em detrimento da onisciência divina.
4.4 O teísmo aberto e a teologia do processo
O Teísmo Aberto também possui laços mais fortes do que gosta de admitir com a corrente teológica que atende pelo nome de Teologia do Processo.
Existe [...] uma semelhança visível entre a relação de Deus com o tempo defendida pela Teologia Relacional e aquela da Teologia do Processo. É verdade que os teólogos relacionais criticam a Teologia do Processo; todavia, não conseguiram se distanciar o suficiente para evitar a sua influência [...] De acordo com o cristianismo clássico, o Deus eterno criou o tempo e vive fora dele. Dessa forma, ele pode contemplar simultaneamente o passado, o presente e o futuro, como se fossem janelas ou telas abertas diante dEle. A Teologia do Processo nega esse conceito e defende que a realidade está em processo de mudança constante e que Deus evolui e progride dentro dessa realidade. Os teólogos relacionais admitem que Deus vive no tempo, mas discordam que isso faça parte essencial da Sua existência. Afirmam que ele optou por viver no tempo para poder Se relacionar de forma amorosa e significativa com Suas criaturas [...] apesar das críticas à Teologia do Processo, a Teologia Relacional afirma que Deus vive dentro do tempo, sujeito ao passar do tempo e às mudanças que isso proporciona. Ao final, temos de lidar com um Deus que, à nossa semelhança, aprende e evolui com o passar do tempo e não pode saber com exatidão o que nos aguarda no futuro. (LOPES, 2008, pp. 19,20).
Percebe-se com isso que o atributo divino da imutabilidade é completamente ignorado, prejudicando assim a perfeição da deidade, pois, como tem sustentado a ortodoxia cristã ao longo dos séculos, “Se o ser de Deus possui toda a perfeição possível, então qualquer mudança nele deve ser para a pior. Por ser imutável, não pode piorar. E por deter toda a perfeição, ele não tem necessidade de se alterar ou passar por um desenvolvimento” (CHEUNG, 2008, p. 84). Estariam os defensores da visão aberta e da teologia do processo dispostos a sustentar a idéia de que o deus a quem cultuam, em virtude de seu desenvolvimento, pode estar pior hoje do que a dois mil anos atrás? Tal possibilidade deve ser admissível em seus sistemas de pensamento.
Outra semelhança é “[...] a crítica de que a teologia cristã clássica foi influenciada por idéias da filosofia grega quanto a formulação da doutrina de Deus” (LOPES, 2008, p. 21), o que constitui grande ironia, já que o Teísmo Aberto, como supracitado, importa para seu corpo doutrinário uma gama de conceitos da visão grega. Ambas as posições, Teologia do Processo e Teísmo Aberto, defendem também:
[...] uma reformulação da doutrina clássica a respeito de Deus. A onisciência de Deus deve ser entendida como Seu conhecimento de tudo que pode ser conhecido – menos o futuro que ainda não aconteceu. A onipotência é entendida como poder perfeito, mas Deus não tem monopólio dele. Ele tem todo o poder possível a um ser. Não que Seu poder seja ilimitado. Ele é somente o maior. Portanto, Deus nunca pode determinar um evento, ou que alguma coisa aconteça irreversivelmente. Seu poder é coercivo, nunca determinativo. Todas essas idéias são também defendidas pelos teólogos relacionais” (LOPES, 2008, pp. 21, 22).
5 ASPECTOS PRÁTICOS DO TEÍSMO ABERTO
Veja o Deus de amor do Teísmo Aberto em ação. Imagine a cena: um homem viciado em crack sai pelas ruas com uma arma na mão; ele quer mais dinheiro para sustentar seu vício. Numa rua sem movimento e mal iluminada, uma jovem caminha rumo à estação de metrô. Ela se atrasou no trabalho e saiu mais tarde que o habitual. O encontro é inevitável e Deus assiste tudo. Repentinamente, o homem saca a arma. A jovem tenta fugir e ele dispara. Ela cai morta e ele vai embora com o dinheiro, encerrando assim o trágico episódio.
Segundo o Teísmo Aberto, Deus nada podia fazer, pois, se o fizesse, violaria a liberdade (livre-arbítrio) daqueles agentes livres. Deus não sabia o que aconteceria, pois haviam muitas ações livres implícitas na questão e tudo o que Deus conhece são as possibilidades. Aquilo machucou profundamente o coração de Deus e ele certamente estava torcendo para que nada de mal acontecesse, mas não havia nada que Ele pudesse fazer, senão lamentar angustiadamente. “E quanto ao propósito? Deve haver algum propósito em todo este caso lamentável.” – alguém perguntaria. O deus do Teísmo Aberto diz: “Não! Foi tudo uma fatalidade”.
Bruce A. Ware (2010, pp. 13, 14), ilustrando a visão do “Teísmo Aberto” acerca do sofrimento, escreve:
Quando a tragédia entrar em sua vida, por favor, não pense que Deus tem algo a ver com isso! Deus não deseja que a dor e o sofrimento ocorram e, quando isso acontece, ele se sente tão mal com a situação como aqueles que estão sofrendo. Não pense que, de alguma maneira, essa tragédia deva cumprir algum propósito final. É bem possível que não seja assim! O mal que Deus não deseja acontece a todo momento e, com freqüência, não serve para nenhum bom propósito. Porém, quando sobrevém a tragédia, podemos confiar que Deus está conosco e nos ajuda a reconstruir o que se perdeu. Afinal, de uma coisa temos certeza, a saber: Deus é amor. Então, embora não possa evitar que uma boa parcela de coisas ruins aconteça, ele sempre estará conosco quando elas acontecerem.
6 O TEÍSMO ABERTO VERSUS A SAGRADA ESCRITURA
Será que a Bíblia se engana ao relatar o episódio de Atos 4.27-28? “De fato, Herodes e Pôncio Pilatos reuniram-se com os gentios e com o povo de Israel nesta cidade, para conspirar contra o teu santo servo Jesus, a quem ungiste. Fizeram o que o teu poder e a tua vontade haviam decidido de antemão que acontecesse” (NVI).
Não lemos aqui que todo o sofrimento que sobreviera a Jesus fora determinado por Deus? Deus estava por trás de tudo isso, inclusive das ações, supostamente “livres”, dos ímpios. Como Pink (2001, p. 28) bem expressou:
Deus sabia da crucificação do Seu Filho e a predisse muitas centenas de anos antes que Ele se encarnasse, e isso, porque, segundo o propósito divino, Ele era o Cordeiro morto desde a fundação do mundo. Portanto, lemos que Ele “... foi entregue pelo determinado conselho e presciência de Deus...” (Atos 2:23).
É importante destacar aqui que tal acontecimento não fora destituído de propósito, mas pelo contrário, foi por meio deste sofrimento que recebemos a salvação!
E o que dizer sobre o diálogo entre Deus e Ananias a respeito do apóstolo Paulo? Conforme Atos 9.15-16, lemos: “Mas o Senhor disse a Ananias: ‘Vá! Este homem é meu instrumento escolhido para levar o meu nome perante os gentios e seus reis, e perante o povo de Israel. Mostrarei a ele o quanto deve sofrer pelo meu nome” (NVI). Como, pela visão do “Teísmo Aberto”, responder a passagens como essas sem desrespeitar (ou até mesmo violentar) o texto bíblico? Só podemos afirmar com Ware (2010, p. 21) que:
A visão aberta rebaixa Deus, pura e simplesmente falando. Tenta tornar mais significativa a escolha e ação humanas, a custa da própria grandeza e glória de Deus. O Deus do teísmo aberto é muito limitado, simplesmente por ser menos que o majestoso, pleno conhecedor, todo-sábio Deus da Bíblia.
O deus do Teísmo Aberto não sabe e não pode. Está cego quanto ao futuro. Tem a boca fechada e as mãos amarradas para não interferir nas livres escolhas (livre-arbítrio) de seus agentes livres. Está limitado pelo poder das suas criaturas.
O Teísmo Aberto tira o controle remoto do mundo das mãos de Deus e o coloca nas mãos dos homens. É o antropocentrismo entronizado. É um deus extremamente debilitado e não o Deus das Escrituras, sobre o qual lemos: “Porque o domínio é do Senhor, e ele reina sobre as nações” (Sl 22.28); “Mas o nosso Deus está nos céus; ele faz tudo o que lhe apraz” (Sl 115.03). Sobre Sua onisciência: “[...] Eu sou Deus, e não há outro semelhante a mim; que anuncio o fim desde o princípio, e desde a antiguidade as coisas que ainda não sucederam; que digo: O meu conselho subsistirá, e farei toda a minha vontade” (Is 46. 9,10). Eis aqui mais uma visível distinção, pois, o Deus das Escrituras “[...] reivindica para Si a presciência sobre os acontecimentos futuros, desafiando os deuses falsos (Is. 41:22)” (DAGG, 2003, p. 53), enquanto o Deus do Teísmo Aberto permanece na ignorância. Como disse C. S. Lewis (2008, p. 226): “Todos que crêem em Deus acreditam que ele sabe o que eu e você faremos amanhã”.
Buscando resguardar a plena liberdade da criatura, a visão aberta de Deus acaba restringindo a liberdade do Criador. É exatamente neste ponto que o Teísmo Aberto mais uma vez se mostra deficiente, pois em lugar algum nas Escrituras lemos sobre uma criatura plenamente independente de seu Criador. Para sustentar tal coisa, Clark (2010, p. 53) afirma que a própria “[...] doutrina da criação deve ser abandonada”, pois, “Uma criação ex nihilo estaria completamente no controle de Deus”, visto que “Forças independentes não podem ser forças criadas, e forças criadas não podem ser independentes”. Sendo assim, mesmo a Revelação Geral é suficiente para mostrar a necessidade de um Deus Soberano e sustentador de todas as coisas (Heb. 1:3).
Reymond (2011, p. 354), por exemplo, baseado nos estudos em biometereologia de Sallie Tisdale (“Weather’s Unseen Power”, Outside [Dezembro 1995]) aponta para o fato de como o clima, o qual é mantido e determinado por Deus (Gên 8:22), pode influenciar os seres vivos, inclusive em suas decisões, e então escreve (em resposta a doutrina do livre-arbítrio sustentada por Pinnock):
[...] assumindo, novamente por causa do argumento apenas, que a vontade do homem seja normalmente livre, mesmo Pinnock não negará que causas desconhecidas a eles podem influenciar e mesmo forçar pessoas a escolherem um ao invés de outro curso de ação. O clima, por exemplo, – no mínimo, às vezes desconhecido para nós – afeta como sentimos, o que, por sua vez, influencia nossas escolhas. Doenças presentes em nosso corpo das quais estamos inconscientes (por exemplo, tumores cerebrais) podem nos levar, enquanto presumimos o tempo todo nossa sanidade, a tomar decisões irracionais. Os pais, muito tempo depois de mortos, através de seus ensinos e exemplos em nossos anos de formação, freqüentemente agora, sem que estejamos cientes disso, ainda exercem uma poderosa e determinante influência sobre nós em nossos anos adultos (Prov. 22:6). O problema que se levanta é este: como pode qualquer homem conhecer com certeza, quando escolhe um curso específico de ação, que era completamente livre de todas estas causações externas ou internas? [2]
A este respeito, Clark (apud REYMOND, 2011, p. 354) declara:
A conclusão é evidente, não é? Para sabermos que nossa vontade não é determinada por qualquer causa, devemos conhecer todas as causas possíveis no universo inteiro. Nada poderia escapar de nossas mentes. Ser consciente do livre-arbítrio, portanto, requer onisciência. Desde que não há consciência do livre-arbítrio: o que seus expoentes tomam como consciência do livre-arbítrio é simplesmente a inconsciência do determinismo. [3]
No século XVI, Lutero travou sua própria batalha quanto à questão do livre-arbítrio. Pink (2001, p. 39) registra que “Numa de suas cartas a Erasmo, disse Lutero: ‘As tuas idéias sobre Deus são demasiado humanas”. Podemos dizer a mesmíssima coisa no que se refere à teologia sustentada pelo Teísmo Aberto.
Portanto, O deus do Teísmo Aberto só nos deixa o desespero, pois um deus que não seja o “Todo-Poderoso” que “reina” (Ap 19.6; 15.3 - ó Rei dos séculos) e conhecedor de “todas as coisas” (1 Jo 3.20 - inclusive “as coisas que ainda não sucederam” - Is 9.10]) não é digno de confiança nem tem autoridade para fazer cumprir suas promessas. “Quanto à visão aberta, só se pode dizer o seguinte: ‘O Deus deles é limitado demais!’” (WARE, 2010, p. 20).
Como Pink (2001, pp. 40, 41) escreveu, “Um Deus cuja vontade é impedida, cujos desígnios são frustrados, cujo propósito é derrotado, nada possui que se lhe permita chamar Deidade, e, longe de ser digno objeto de culto, só merece desprezo”.
7 CONCLUSÃO
Concluímos, por tudo que foi apresentado até aqui, que o Teísmo Aberto confronta as doutrinas basilares do cristianismo histórico, contradizendo o claro ensino das Escrituras e apresentando uma perspectiva acerca de Deus que está muito aquém daquela sustentada pela ortodoxia cristã.
Deus disse a Moisés: “Eu Sou o que Sou” (Ex 3.14), e é assim que devemos adorá-Lo; não tentando fazer de Deus aquilo que Ele não é ou o que queremos que Ele seja. Continua pertinente e atual a acusação de Pink de que: “Os idólatras do lado de fora da cristandade fazem “deuses” de madeira e de pedra, enquanto que os milhões de idólatras que existem dentro da cristandade fabricam um Deus extraído de suas mentes carnais” (PINK, 2001, p. 40).
Devemos atentar para o fato de que aquele que adora outros deuses, por mais amorosos que possam parecer estes outros deuses, está sujeito ao juízo do Senhor, que diz: “Certamente perecerá” (Dt 8.19), e o “profeta que tiver a presunção de falar [...] em nome de outros deuses, esse profeta morrerá” (Dt 18.20).
“Não terás outros deuses diante de mim” (Ex 20.3). Este é o mandamento mais quebrado e o pecado mais cometido em nossa geração. O Teísmo Aberto tem sido responsável por estimular e propagar tal pecado, devendo ser rejeitado como a teologia de um outro “deus”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAVINCK, H. Teologia Sistemática. Santa Bárbara d’Oeste: Socep, 2001.
CHEUNG, V. Introdução à Teologia Sistemática. São Paulo: Arte Editorial, 2008.
CLARK, G. H. Deus e o Mal: o problema resolvido. Brasília: Editora Monergismo, 2010.
DAGG, J. L. Manual de Teologia. São José dos Campos: Fiel, 2003.
LEWIS, C. S. Cristianismo Puro e Simples. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
LOPES, A. N. Teologia Relacional: Suas origens, seus ensinos, suas conseqüências. São Paulo: Ed. PES, 2008.
PINK, A. W. Os Atributos de Deus. São Paulo: Ed. PES, 2001.
REYMOND, R. L. A New Systematic Theology of the Christian Faith. Nashiville: Thomas Nelson, 2011.
SEATON, W. J. Os Cinco Pontos do Calvinismo. São Paulo: Ed. PES.
WARE, B. A. Teísmo Aberto: a teologia de um deus limitado. São Paulo: Vida Nova, 2010.



[1] Os textos bíblicos utilizados aqui foram extraídos, em sua maioria, de BÍBLIA SAGRADA. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2. ed. rev. e atual. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2009. Aqueles que divergirem desta tradução serão devidamente identificados.
[2] But assuming, again For the sake of argument only, that man’s will is normally free, even Pinnock will not deny that causes unknown to them can influence and even force people to choose one rather than another course of action. The weather – at least sometimes unknown to us – affects how we fell, for instance, which in turn influences our choices. Diseases present in our body of which we are unaware (for example, brain tumors) can cause us, while we presume all the while our sanity, to make irrational decisions. Parents long dead, through their teaching and example in our formative years, often now without our being aware of it, still wield a powerful determining influence upon us in our adult years (Prov. 22:6). The problem that arises is this: How can any man know for sure, when he has chosen a specific course of action, that he was completely free from all such external or internal causation?
[3] The conclusion is evident, is it not? In order to know that our wills are determined by no cause, we should have to know every possible cause in the entire universe. Nothing could escape our mind. To be conscious of free will therefore requires omniscience. Hence there is no consciousness of free will: what its exponents take as consciousness of free will is simply the unconsciousness of determinism.

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